Parte (3)
Gadamer
inicia sua fala sobre a solidariedade lembrando-nos que quando olhamos suas
manifestações nota-se pelo menos de duas maneiras: às vezes declaramos que
temos solidariedade ou às vezes sentimos a solidariedade. Experiências trágicas
como a vivida por Gadamer e seus contemporâneos também possibilitam o
desenvolvimento de uma forma de manifestação da solidariedade. Na guerra e nas
experiências cruéis surgem atos e sentimentos de solidariedade. Mas o que nós
queremos dizer com a palavra solidariedade, pergunta-se Gadamer. Da etimologia
da palavra solidariedade, do latim solidum
que também expressava o soldo
(pagamento), Gadamer nos fala que a solidariedade é um valor, uma virtude, que
conta por si só, que possui um valor intrínseco. Ela é genuína e expressa uma
autentica e fiel inseparabilidade de ser o mesmo ainda que, quando em verdade,
os interesses e as situações da vida nos tentem a abandonar a solidariedade e
retroceder no bem estar do Outro.
Podemos
notar que a solidariedade é aquela rede de confiança em que uma comunidade se
estabelece quando aqueles critérios, análogos da amizade, são parte da
experiência hermenêutica das pessoas no plano ético. A solidariedade não é a
mesma virtude que a amizade, mas, também é desde sempre dada no plano da práxis e passa pelos elementos do estar-em-casa, do amor-próprio e do viver-com-outros.
Sua diferença em relação à amizade, até aqui, está no apelo ao comum em
situações de crise como forma de demonstrar que existem elementos
compartilhados que podem ser trazidos à tona como forma de sanar as situações
de crise. O recorrer à solidariedade é demonstrado por Gadamer quando ele
exemplifica que quando se declara estar em solidariedade, seja livremente ou
sob coação, há uma renúncia dos próprios interesses e preferências. Outro
exemplo que Gadamer dá é a renuncia que se faz em defesa de uma ideia ou
pensamento em nome da solidariedade[1].
Solidariedade
é uma virtude, um valor, que preserva para Gadamer um duplo significado: ela
pode ser vista em parte como benefício e em parte como privação. Essa
ambiguidade preserva à solidariedade uma ampla possibilidade de ser trazida à
consciência das pessoas nas suas interações. Como elemento em que as pessoas
podem depositar sua confiança, a solidariedade é também um valor capaz de estabelecer
a crítica e a correção da política, da eficácia sociológica das leis. A partir
da solidariedade, Gadamer demonstra como as lutas partidárias pelo interesse
autorreferencial dos partidos perde o sentido do que é realmente importante do
ponto de vista ético. A política tem de se ligar ao sentido comunitário que é
expresso por meio da autentica solidariedade.
A
solidariedade também tem uma outra dimensão abordada pro Gadamer: a
reivindicação por ela. Gadamer diz que a solidariedade real depende da
declaração dos indivíduos e da ação deles por ela. Isso está em conformidade
com o que pudemos ver sobre a ética e a práxis
em Gadamer. Sendo a solidariedade uma virtude, a ação pela qual ela se
desenvolve e se modifica demonstra que compreendê-la exige a sua aplicação,
como nas demais experiências hermenêuticas. No entanto ela preserva sua
peculiaridade e um traço bastante interessante que na análise da amizade
Gadamer não havia tratado: a exigibilidade. Gadamer diz que a solidariedade é uma promessa de pagamento de
amizade, que é limitada, como tudo o mais, assim como clama por uma
completa dedicação de nossa boa vontade. Mas como assim uma promessa de
pagamento de amizade? Não é a amizade um valor que não pode ser negociado tal
qual um bem? Não vimos que a amizade não é sujeita ao decisionismo das pessoas?
A
solidariedade é uma promessa de pagamento de amizade não porque a amizade é um
negociável no mercado, mas porque as pessoas podem apelar por meio dela aos
elementos constitutivos da amizade. A solidariedade passa a ser um valor que
permite a ampliação do amor-próprio,
da conciliação de si mesmo com o outro, a nosso ver, para além das barreiras
impostas pelas limitações históricas. Isso não quer dizer que a solidariedade é
ahistórica ou que não se dá no plano de experiência hermenêutica. Não se trata
disso. Tal quais as demais experiências ela é situada e enraizada na
temporalidade. O que queremos afirmar é que é possível apelar à solidariedade
para que os elementos do estar-com-outros
possam ser acessíveis até mesmo àqueles com que não estamos ou não
compartilhamos de maneira direta um mesmo solo comum. Evidentemente que essa
exigibilidade, possibilidade de se apelar à solidariedade e fazê-la concreta,
por isso exigível do outro, só pode se dar quando os mesmos elementos da
reconciliação de si no outro se desenvolvem. Porém, um pouco mais a frente, a
solidariedade exige que essa reconciliação se manifeste no plano da ação
concreta, como não poderia ser diferente, tendo como telos o bem-estar do outro.
Essa ação, pensamos, vai um pouco mais além, pois ela se manifesta também no
domínio do político, pois a exigibilidade da solidariedade, do cumprimento do
pagamento da promessa, demanda que a comunidade política possa estar amparada
por instituições capazes de fazê-las concretas. Podemos falar então que a
solidariedade é uma virtude política que traz ao plano da comunidade uma conciliação
dela mesma para os seus cidadãos.
Podemos
pensar a solidariedade em analogia como a amizade, experiência do tu e problema hermenêutico na mesma
linha da segunda parte de nosso trabalho.
(a) Um
primeiro nível de solidariedade: minimalista. No plano do político, os vínculos
que os cidadãos estabelecem a partir da observação do comportamento da ação de
uns dos outros para a consecução de seus interesses é tipicamente próprio de
uma concepção liberal de política em que os cidadãos só conseguem se enxergar
como agentes privados que perseguem seus próprios interesses. Esse tipo de
experiência política ignora o Outro em várias de suas manifestações, não
permite que os cidadãos possam se ver como uma comunidade que se autodetermina
e corrompe tanto as bases materiais da vida em comum com as bases do autorrespeito.
A comunidade não consegue, assim, perceber que as Instituições políticas podem
fazer parte do seu autoconhecimento e aprendizado ao longo da história. A sua
tradição política e jurídica é apenas o objeto para a consecução de interesses
e práxis para o bem comum se dissipa na
luta dos cidadãos atomizados e dos partidos que se tornam representações de
lobbys.
(b) O
segundo nível da experiência da solidariedade poderia ser aquela em que os
laços dos cidadãos são reforçados por uma consciência histórica que se
manifesta na outorga total ao macro-sujeito Estado da determinação dos valores
e condução da determinação da experiência do outro. Uma autodeterminação
comunitária que se entenda suficientemente reflexiva ao ponto de suprimir a
necessidade de autocompreensão dos cidadãos por meio da experiência hermenêutica
passa a ser a encarnação política da consciência histórica. O resultado disso é
a perda da autonomia e a supressão do Outro no plano da política. A este não é
dada mais a chance de conciliar consigo mesmo. É a vontade da comunidade que se
impõe a ele de forma a dissipar a legitimação de suas próprias pretensões. Não
queremos parecer exagerados, mas as experiências totalitárias de Estado parecem
ser o segundo nível dessa manifestação histórica da solidariedade. Num nível um
pouco menos hard o Estado de
bem-estar-social que se torna paternalista também pode deixar fluir essa
solidariedade não autentica.
(c)
Por último, o nível da
solidariedade autentica. A solidariedade autentica, entendemos, deve ser pensada
por meio da consciência histórica
efeitual. No âmbito do político, a solidariedade autentica permite que a
experiência tu seja uma experiência
de abertura ao Outro. Não se deve passar por cima de suas pretensões. Ela
permite uma mútua abertura no plano da ética e do político, capazes de promover
a compreensão mútua entre os cidadãos. O sentido de renuncia aos interesses e
preferências tal qual é pensado no apelo à solidariedade guarda uma analogia
com o reconhecimento de que devo estar disposto a deixar valer em mim algo
contra mim, ainda que não haja nenhum outro que vá fazer valer por mim. Não
queremos parecer exagerados, mas apenas o Estado democrático de direito é capaz
de satisfazer no plano do político as exigências da experiência autentica da
solidariedade. Uma política exercida de maneira participativa e suficientemente
discursiva permite que o diálogo se estabeleça entre os cidadãos que poderão
fazer suas exigências pelo cumprimento da promessa de pagamento de amizade por
meio do diálogo. Por isso o Estado democrático de direito é importante, pois
ele assegura, por meio da linguagem dos direitos, a autonomia dos cidadãos que
podem tanto vir a falar (direitos de participação) como deixar falar (direitos
subjetivos de ação). No plano do problema hermenêutico, o Estado democrático de
direito está sempre aberto apreensão histórica de suas instituições. Por meio
do direito, os atuais cidadãos e representantes podem sempre interpretar o
legado deixado pelo conjunto das escolhas e decisões políticas que foram
tomadas no passado. Eles podem avaliá-las e compreendê-las à luz de suas situações
históricas atuais.
Em
(c) podemos falar de uma solidariedade autentica, pois a autodeterminação
democrática permite que a experiência hermenêutica não seja suprimida no âmbito
da práxis dos cidadãos, pois ela
respeita o Outro e a conciliação de si no outro. Por outro lado, em (c) fica em
aberto sempre a possibilidade do sentido crítico que Gadamer quis dar a solidariedade
quando disse que ela pode nos mostrar como a política se afasta do que é comum
e sólido para as pessoas. No Estado democrático de direito, em suas atuais
formas, as pessoas tem a chance de falar e ouvir de tal forma com que se possa
demonstrar esse sentido de perda da ligação dos anseios da comunidade no plano
do político. Esperamos não ter feito uma homologia demasiado grosseria. O que
pretendemos foi apenas demonstrar que é possível pensar o político a partir da hermenêutica
filosófica de Gadamer. Ao longo desse trabalho também passamos pela experiência
hermenêutica de interpretar seus aclaramentos. Para nós parece que é bastante
razoável pensar que as manifestações da experiência do tu e do problema hermenêutico da conciliação com a tradição também
podem ser vistos, por analogia, aos problemas da ética e da política
contemporâneas.
[1] GADAMER, H. G. Friendship and Solidarity. Research in Phenemonology, Leiden, vol. 39, issue 1, 2009, p. 3-12.
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