segunda-feira, 2 de julho de 2012


Parte (3) 
 

Gadamer inicia sua fala sobre a solidariedade lembrando-nos que quando olhamos suas manifestações nota-se pelo menos de duas maneiras: às vezes declaramos que temos solidariedade ou às vezes sentimos a solidariedade. Experiências trágicas como a vivida por Gadamer e seus contemporâneos também possibilitam o desenvolvimento de uma forma de manifestação da solidariedade. Na guerra e nas experiências cruéis surgem atos e sentimentos de solidariedade. Mas o que nós queremos dizer com a palavra solidariedade, pergunta-se Gadamer. Da etimologia da palavra solidariedade, do latim solidum que também expressava o soldo (pagamento), Gadamer nos fala que a solidariedade é um valor, uma virtude, que conta por si só, que possui um valor intrínseco. Ela é genuína e expressa uma autentica e fiel inseparabilidade de ser o mesmo ainda que, quando em verdade, os interesses e as situações da vida nos tentem a abandonar a solidariedade e retroceder no bem estar do Outro.
Podemos notar que a solidariedade é aquela rede de confiança em que uma comunidade se estabelece quando aqueles critérios, análogos da amizade, são parte da experiência hermenêutica das pessoas no plano ético. A solidariedade não é a mesma virtude que a amizade, mas, também é desde sempre dada no plano da práxis e passa pelos elementos do estar-em-casa, do amor-próprio e do viver-com-outros. Sua diferença em relação à amizade, até aqui, está no apelo ao comum em situações de crise como forma de demonstrar que existem elementos compartilhados que podem ser trazidos à tona como forma de sanar as situações de crise. O recorrer à solidariedade é demonstrado por Gadamer quando ele exemplifica que quando se declara estar em solidariedade, seja livremente ou sob coação, há uma renúncia dos próprios interesses e preferências. Outro exemplo que Gadamer dá é a renuncia que se faz em defesa de uma ideia ou pensamento em nome da solidariedade[1].
Solidariedade é uma virtude, um valor, que preserva para Gadamer um duplo significado: ela pode ser vista em parte como benefício e em parte como privação. Essa ambiguidade preserva à solidariedade uma ampla possibilidade de ser trazida à consciência das pessoas nas suas interações. Como elemento em que as pessoas podem depositar sua confiança, a solidariedade é também um valor capaz de estabelecer a crítica e a correção da política, da eficácia sociológica das leis. A partir da solidariedade, Gadamer demonstra como as lutas partidárias pelo interesse autorreferencial dos partidos perde o sentido do que é realmente importante do ponto de vista ético. A política tem de se ligar ao sentido comunitário que é expresso por meio da autentica solidariedade.
A solidariedade também tem uma outra dimensão abordada pro Gadamer: a reivindicação por ela. Gadamer diz que a solidariedade real depende da declaração dos indivíduos e da ação deles por ela. Isso está em conformidade com o que pudemos ver sobre a ética e a práxis em Gadamer. Sendo a solidariedade uma virtude, a ação pela qual ela se desenvolve e se modifica demonstra que compreendê-la exige a sua aplicação, como nas demais experiências hermenêuticas. No entanto ela preserva sua peculiaridade e um traço bastante interessante que na análise da amizade Gadamer não havia tratado: a exigibilidade. Gadamer diz que a solidariedade é uma promessa de pagamento de amizade, que é limitada, como tudo o mais, assim como clama por uma completa dedicação de nossa boa vontade. Mas como assim uma promessa de pagamento de amizade? Não é a amizade um valor que não pode ser negociado tal qual um bem? Não vimos que a amizade não é sujeita ao decisionismo das pessoas?
A solidariedade é uma promessa de pagamento de amizade não porque a amizade é um negociável no mercado, mas porque as pessoas podem apelar por meio dela aos elementos constitutivos da amizade. A solidariedade passa a ser um valor que permite a ampliação do amor-próprio, da conciliação de si mesmo com o outro, a nosso ver, para além das barreiras impostas pelas limitações históricas. Isso não quer dizer que a solidariedade é ahistórica ou que não se dá no plano de experiência hermenêutica. Não se trata disso. Tal quais as demais experiências ela é situada e enraizada na temporalidade. O que queremos afirmar é que é possível apelar à solidariedade para que os elementos do estar-com-outros possam ser acessíveis até mesmo àqueles com que não estamos ou não compartilhamos de maneira direta um mesmo solo comum. Evidentemente que essa exigibilidade, possibilidade de se apelar à solidariedade e fazê-la concreta, por isso exigível do outro, só pode se dar quando os mesmos elementos da reconciliação de si no outro se desenvolvem. Porém, um pouco mais a frente, a solidariedade exige que essa reconciliação se manifeste no plano da ação concreta, como não poderia ser diferente, tendo como telos o bem-estar do outro. Essa ação, pensamos, vai um pouco mais além, pois ela se manifesta também no domínio do político, pois a exigibilidade da solidariedade, do cumprimento do pagamento da promessa, demanda que a comunidade política possa estar amparada por instituições capazes de fazê-las concretas. Podemos falar então que a solidariedade é uma virtude política que traz ao plano da comunidade uma conciliação dela mesma para os seus cidadãos.
Podemos pensar a solidariedade em analogia como a amizade, experiência do tu e problema hermenêutico na mesma linha da segunda parte de nosso trabalho.
(a)  Um primeiro nível de solidariedade: minimalista. No plano do político, os vínculos que os cidadãos estabelecem a partir da observação do comportamento da ação de uns dos outros para a consecução de seus interesses é tipicamente próprio de uma concepção liberal de política em que os cidadãos só conseguem se enxergar como agentes privados que perseguem seus próprios interesses. Esse tipo de experiência política ignora o Outro em várias de suas manifestações, não permite que os cidadãos possam se ver como uma comunidade que se autodetermina e corrompe tanto as bases materiais da vida em comum com as bases do autorrespeito. A comunidade não consegue, assim, perceber que as Instituições políticas podem fazer parte do seu autoconhecimento e aprendizado ao longo da história. A sua tradição política e jurídica é apenas o objeto para a consecução de interesses e práxis para o bem comum se dissipa na luta dos cidadãos atomizados e dos partidos que se tornam representações de lobbys.

(b)  O segundo nível da experiência da solidariedade poderia ser aquela em que os laços dos cidadãos são reforçados por uma consciência histórica que se manifesta na outorga total ao macro-sujeito Estado da determinação dos valores e condução da determinação da experiência do outro. Uma autodeterminação comunitária que se entenda suficientemente reflexiva ao ponto de suprimir a necessidade de autocompreensão dos cidadãos por meio da experiência hermenêutica passa a ser a encarnação política da consciência histórica. O resultado disso é a perda da autonomia e a supressão do Outro no plano da política. A este não é dada mais a chance de conciliar consigo mesmo. É a vontade da comunidade que se impõe a ele de forma a dissipar a legitimação de suas próprias pretensões. Não queremos parecer exagerados, mas as experiências totalitárias de Estado parecem ser o segundo nível dessa manifestação histórica da solidariedade. Num nível um pouco menos hard o Estado de bem-estar-social que se torna paternalista também pode deixar fluir essa solidariedade não autentica.

(c)   Por último, o nível da solidariedade autentica. A solidariedade autentica, entendemos, deve ser pensada por meio da consciência histórica efeitual. No âmbito do político, a solidariedade autentica permite que a experiência tu seja uma experiência de abertura ao Outro. Não se deve passar por cima de suas pretensões. Ela permite uma mútua abertura no plano da ética e do político, capazes de promover a compreensão mútua entre os cidadãos. O sentido de renuncia aos interesses e preferências tal qual é pensado no apelo à solidariedade guarda uma analogia com o reconhecimento de que devo estar disposto a deixar valer em mim algo contra mim, ainda que não haja nenhum outro que vá fazer valer por mim. Não queremos parecer exagerados, mas apenas o Estado democrático de direito é capaz de satisfazer no plano do político as exigências da experiência autentica da solidariedade. Uma política exercida de maneira participativa e suficientemente discursiva permite que o diálogo se estabeleça entre os cidadãos que poderão fazer suas exigências pelo cumprimento da promessa de pagamento de amizade por meio do diálogo. Por isso o Estado democrático de direito é importante, pois ele assegura, por meio da linguagem dos direitos, a autonomia dos cidadãos que podem tanto vir a falar (direitos de participação) como deixar falar (direitos subjetivos de ação). No plano do problema hermenêutico, o Estado democrático de direito está sempre aberto apreensão histórica de suas instituições. Por meio do direito, os atuais cidadãos e representantes podem sempre interpretar o legado deixado pelo conjunto das escolhas e decisões políticas que foram tomadas no passado. Eles podem avaliá-las e compreendê-las à luz de suas situações históricas atuais.

Em (c) podemos falar de uma solidariedade autentica, pois a autodeterminação democrática permite que a experiência hermenêutica não seja suprimida no âmbito da práxis dos cidadãos, pois ela respeita o Outro e a conciliação de si no outro. Por outro lado, em (c) fica em aberto sempre a possibilidade do sentido crítico que Gadamer quis dar a solidariedade quando disse que ela pode nos mostrar como a política se afasta do que é comum e sólido para as pessoas. No Estado democrático de direito, em suas atuais formas, as pessoas tem a chance de falar e ouvir de tal forma com que se possa demonstrar esse sentido de perda da ligação dos anseios da comunidade no plano do político. Esperamos não ter feito uma homologia demasiado grosseria. O que pretendemos foi apenas demonstrar que é possível pensar o político a partir da hermenêutica filosófica de Gadamer. Ao longo desse trabalho também passamos pela experiência hermenêutica de interpretar seus aclaramentos. Para nós parece que é bastante razoável pensar que as manifestações da experiência do tu e do problema hermenêutico da conciliação com a tradição também podem ser vistos, por analogia, aos problemas da ética e da política contemporâneas.


[1] GADAMER, H. G.  Friendship and Solidarity. Research in Phenemonology, Leiden, vol. 39, issue 1, 2009, p. 3-12. 

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