Venho desenvolvendo um interesse por estudar a solidariedade. Surgiu a oportunidade de vê-la em Gadamer na disciplina do Prof. Roberto Wu. Ainda está em fase de desenvolvimento, mas publico aqui os apontamentos preliminares de um estudo que pretendo aprofundar.
Davi José de Souza da Silva[2]
RESUMO: Pretendemos com o presente
trabalho apresentar as principais nuances de como pensar a solidariedade a
partir de H. G. Gadamer e sua hermenêutica filosófica. Para isso dividimos
nosso trabalho em três partes. (1) No
primeiro momento iremos explicitar o que Gadamer entende por ética e como esta
está ligada a experiência hermenêutica do outro (tu) com intuito de destacar a importância da alteridade na
compreensão prática. (2) Em seguida,
iremos ver como a experiência do outro
(tu) é ligada à amizade como uma experiência
fenomenológica do partilhar. Esse
ponto tem por objetivo explicitar que a experiência da alteridade preserva como
ponto importante a mantença da diferença.
(3) Por último, como pode ser
compreendida a solidariedade a partir
de Gadamer, assim como podem ser considerados seus reflexos no domínio do
político.
Palavras
Chaves: solidariedade,
amizade, ética, hermenêutica, compreensão.
Discutir o que se pode compreender
sobre solidariedade é uma proposta
atual e importante para as pessoas e para os cidadãos. Em nossa época de
comunicação midiática e fluxos de informações digitalizadas diminui o anonimato
e aumenta a indiferença. Sabemos quem foram os responsáveis pelos últimos
assaltos, homicídios ou subornos político, porém pouca ação se desdobra das
preocupações éticas que muitas vezes sequer empreendemos nosso cotidiano. Talvez
tenhamos perdido o sentido daquilo que é mais fundamental para ser
compartilhado em uma comunidade e estejamos perdidos num processo de desencantamento
em que a busca dos interesses e o individualismo prevalecem de uma forma
patológica ultrapassando os âmbitos que lhes são próprios, corroendo outras
esferas de convivência e relações humanas como a amizade, o amor e a
solidariedade. Aparentemente, bate à porta a possibilidade de um processo de
desintegração cada vez maior dos laços que outrora permitiram a formação das
sociedades.
Com o presente trabalho queremos
resgatar uma possibilidade de reação a esses problemas seguindo os passos de H.
G. Gadamer e sua hermenêutica filosófica. Como filosofo da práxis, Gadamer não se furtou a interpretar seu tempo para
enfrentar problemas de uma época em que a responsabilidade
se tornou anônima, conceito que
atribui a seu predecessor em Heidelberg, Karl Jaspers. Para Gadamer este é
Um termo que, diante de seu tempo, está
se tornando cada vez mais verdadeiro. Tornou-se tão diretamente cheio de
verdade que hoje em dia existem clínicas onde o paciente já não tem um nome,
mas recebe um número. Na verdade, a questão que devemos com toda a seriedade
nos perguntar é como aquelas coisas que sustentam a felicidade humana podem ser
desenvolvidas e preservadas nas novas formas de vida que surgem a partir da Revolução
Industrial e suas consequências[3].
Com o desenvolvimento técnico
científico deflagrado desde Galileu somos levados a questionar junto com
Gadamer que ganhos temos com tamanha disponibilidade técnica e instrumental.[4]
A assimetria entre o desenvolvimento tecnológico e a diminuição da coesão
social é para Gadamer um problema que se agudiza na invasão do discurso técnico
científico sobre os elementos fundamentais vida social:
A
tecnologização da natureza e do ambiente natural, com todos os seus efeitos de
longo alcance, ergue-se sob a rubrica de racionalização, desmistificação,
desmitologização, o desmantelamento de precipitada correspondências
antropomórfica. Por fim, a viabilidade econômica, roda de novo equilíbrio do implacável
processo de mudança em nosso século, torna-se cada vez mais uma forte força
social. Tudo isso é característico da maturidade ou, se quiserem, da crise da
nossa civilização, pois o século XX é o primeiro a ser determinado novamente de
forma decisiva pela tecnologia, com o início da transferência de conhecimentos
técnicos a partir do domínio das forças da natureza para a vida social[5].
Diante desse quadro é que surge a
importância de pensar a partir da hermenêutica filosófica a solidariedade. Embora não seja o objeto
principal de Verdade e Método[6],
é na opus magnum de Gadamer que estão
os conceitos fundamentais para compreendê-la. Assim, (1) na primeira parte desse trabalho iremos explicitar o que
Gadamer entende por ética e como esta está ligada a experiência hermenêutica do
outro (tu) com intuito de destacar a
importância da alteridade na compreensão prática. (2) Em seguida, iremos ver como a experiência do outro (tu) é ligada à amizade como um primeiro nível de experiência
fenomenológica do partilhar. Esse
ponto tem por objetivo explicitar que a experiência da alteridade preserva como
ponto importante a mantença da diferença.
(3) Por último, como pode ser
compreendida a solidariedade a partir
de Gadamer.
(1)
Se já pudemos
destacar que Gadamer não deixou de pensar a aplicabilidade de sua hermenêutica
filosófica aos problemas contemporâneos, Georgia Warnke destaca que o pensamento
gadameriano é bastante rico e amplo para se pensar as questões éticas e
políticas de nosso tempo, guardando até mesmo um potencial muito maior em
termos democráticos e não autoritários do que outras visões por ela analisadas
no seu artigo Hermeneutics, Ethics and Politics[7]. Nesse artigo nos interessa a
reconstrução que ela faz da situação hermenêutica como ponto de partida para a experiência hermenêutica. Esta, por sua
vez, revela que o entendimento é uma
experiência intersubjetiva que necessariamente pressupõe o outro (tu). Queremos
acompanhá-la nessas explicações para caracterizar bem o tipo específico de
experiência que se pode desenvolver no plano da compreensão hermenêutica para,
em seguida, comparar com a experiência da amizade e, ao final, com a solidariedade.
A situação hermenêutica em Gadamer, segundo Georgia Warnke, acompanha
o pensamento de Heidegger ao entender que os indivíduos estão desde já lançados na história de um quadro de
estórias do qual não iniciamos e também não iremos terminar, porém temos de dar
continuidade[8]. Para
Gadamer, a situação hermenêutica é
dialógica, pois interprete e o que se interpreta encontram um ao outro, sendo
este encontro de ambos determinado pela finitude da experiência humana, que por
sua vez também determina que nossas tentativas de nos ligarmos ao fluxo da
consciência da história efetiva (Wirkungsgeschichte) é sempre incompleta[9].
No plano da ética, para que possamos agir temos de nos compreender como parte
de uma história cujo entendimento implica em compreender quem nós somos e quem
nós queremos ser. Nesse processo de entendimento, é importante saber que o
nosso ser é determinado pelo fluxo da história que nos transmite no interior de
uma tradição o qual pertencemos nossos pré-conceitos, cujo conjunto forma o
ponto de partida para o entendimento[10].
Essa forma de compreender necessária para agir
é circular e conduz Gadamer, explica Georgia Warnke, à reformulação do círculo hermenêutico proposto por
Schleiermacher. Gadamer entende que o texto fundamental que tem de ser
compreendido são as narrativas em que nos encontramos. Os questionamentos acima
feitos para nós mesmos no sentido de buscar a compreensão do nosso lugar
histórico no mundo. Somos seres
históricos localizados em determinadas culturas, línguas, regiões, heranças
culturais, etc. Essa temporalidade é
que faz com que o círculo não se torne vicioso, pois quando queremos entender a
nós mesmos inevitavelmente nós partidos da nossa posição atual na história que,
por sua contingência, não será completa e precisará que outras pessoas possam
dar continuidade às linhas de transmissão e compreensão da história[11].
Uma
vez que a compreensão que podemos ter é hermenêutica e se dá no curso da
história, a ética e a política enquanto conhecimento prático também não pode
abdicar do enraizamento histórico. Esse raciocínio conduz Gadamer a pensar uma
filosófica prática que não seja desligada da práxis dos agentes, levando a
Aristóteles, pois:
Se o próprio
núcleo do problema hermenêutico é que a tradição como tal tem de ser entendida
de uma maneira diferente, então – visto sob ponto de vista lógico – trata-se de
uma relação entre o geral e o particular. Compreende é então um casão da
aplicação de algo geral a uma situação concreta e particular. Com isso ganha
especial relevância para nós a ética aristotélica, de que já mencionamos nas
nossas considerações introdutórias à teoria das ciências do espírito. É verdade
que Aristóteles não aborda o problema do circulo hermenêutico nem sua dimensão
histórica, mas trata somente da apreciação correta do papel que a razão deve
desempenhar na atuação ética. Mas é isso precisamente que nos interessa aqui,
que ali trata-se de razão e de saber, que não estão separados do ser que
deveio, mas que são determinados por este e que são determinantes para este ser[12].
Gadamer se posiciona pela ética
aristotélica pelo seu sentido prático estar ligado ao ser. Com ela fica
estabelecida a distinção entre razão teórica e razão prática pensada na ação
humana. O que nós podemos entender como bem no sentido teórico é algo
completamente diferente do que podemos entender como correto a se fazer no
sentido prático. A teoria ética passa então a ser uma teoria pragmática no
sentido de ser voltada para a realização do bem numa situação concreta, dada,
em que se vê o sujeito. O conhecimento prático é um conhecimento para a ação do
sujeito e não um conhecimento sobre objetos que pode ser discernido a partir da
observação, antes, ele exige engajamento, interação, uma prática intersubjetiva
com o outro que se estabelece num nível muito mais concreto do que a
especulação teórica[13]:
Assim:
O conjunto da ética humana se distingue
essencialmente da natureza através do fato de que nela não atuam simplesmente
capacidades ou forças, mas pelo fato de que o homem vem a ser tal como veio a
ser, somente através do que faz e de como se comporta, isto significa, porém:
sendo assim, se comporta de uma maneira. Aristóteles opõe ethos à physis, como
sendo um âmbito, no qual não é não seja comandado por regras, mas que não
conhece as leis da natureza, a não ser a mutabilidade e regularidades limitadas
das posturas humanas e de suas formas de comportamento[14].
O conhecimento prático, ético, não é
o conhecimento teórico. Ele exige uma prática em que as pessoas possam
desenvolver sua consciência moral. Gadamer então retoma Aristóteles e a análise
da phronesis para fazer a distinção
entre saber apoiado na tekne e o
saber ético. Diferentemente da tekne, o
saber ético não pode ser aprendido nem esquecido, pois ele não é apropriado
como se fosse uma coisa, tampouco é algo que pode ser eleito como um objetivo.
Antes, acentua Gadamer, desde sempre nos encontramos em uma situação em que
temos de atuar e, por conseguinte, temos de já sempre possuir e aplicar o saber
ético. Muito menos do que regras, o saber prático é constituído de imagens que
o homem forma sobre o que ele deve ser, sobre o justo ou injusto, sobre
decência, coragem, dignidade, solidariedade, são imagens do plano simbólico que
nos conduzem, que nos dão as diretrizes[15].
Ao saber prático então se colocam os mesmos fundamentos da compreensão
hermenêutica, pois as imagens que recebemos sob as quais nos movemos na
situação concreta são as imagens que nos são legadas pela tradição, assim como
as escolhas que temos de fazer sob este quadro simbólico dependem da
compreensão de nós mesmos, de nossos projetos de vida e de como nos
relacionamos com os outros em nossa existência determinada historicamente.
Georgia Warnke destaca pelo menos
três aspectos na análise de Gadamer sobre a diferença entre o saber técnico e o
saber ético. Conforme tratamos acima, o saber prático não é um bem que está à disposição dos sujeitos, nós não podemos
escolher aplicá-lo, nós estamos sempre o exercendo por meio de nossas ações.
Esta é a característica da não
discricionariedade do saber ético que é constitutivo do sentido expresso
acima de que o saber ético não é desprendido do ser que está sendo, mas, antes,
determinado por ele. Na aplicação do saber ético sua determinação se dá na
história que não se encerra com o sujeito finito, sendo a historicidade ao
mesmo tempo a definidora da situação hermenêutica e o raio em que se pode
atuar.[16]
A segunda distinção levantada por
Georgia Warnke é outra modalidade de não discricionariedade. Na primeira
tratada acima, a não discricionariedade se dá no âmbito da escolha entre saber
técnico e saber prático. Como somos seres históricos não temos como escolher
entre usar ou não o saber prático, pois em cada ação que realizamos nos movemos
diante das imagens de mundo que nos são legadas pela tradição e temos de fazer
escolhas fundamentais sobre o projeto de nosso ser. Agora, essa segunda
modalidade de não discricionariedade se refere ao modo como utilizamos o saber
prático. Este sempre se na forma da aplicação de um problema de compreensão
hermenêutica, de entendimento sobre nós mesmos, nosso passado e nossas escolhas
sobre o futuro[17]. Na
medida em que o saber prático é aplicado nossa compreensão do próprio saber
prático é alterada por sua aplicação. Ao mesmo tempo em que ele só pode ser
exercido pela aplicação ele se transforma na aplicação. Essa transformação não se dá no âmbito da tekne.
Quando
construo uma casa ou aprendo a dirigir um carro o faço por meio da aplicação de
um saber técnico. Os imprevistos, as lições, a repetição, o exercício do
artesanato ou da prática da direção poderão tornar a obra ou a perícia
automobilística maior ou menor. Porém, o ideal de uma casa bem construída ou de
um excelente piloto não será alterado. Nossa prática, no caso da tekne, apenas nos tornou mais
habilidosos. No entanto, no saber prático o agir nunca é independente da ação
em si, não sendo possível separar meios dos fins tal qual fazemos com o saber
técnico. A aplicação do saber prático sempre envolve os meios e os fins. As
virtudes e os fins em causa são parcialmente determinados pela ação que se
desenvolve para alcançá-los. Como explica Georgia Warnke, a isso se associa que
o saber prático é sempre uma aplicação de nosso entendimento sobre nós mesmos
como seres virtuosos[18].
A
importante relação entre meios e fins que se estabelece no plano do saber
prático se dá por conta de duas conexões entrevistas por Aristóteles que são
enfatizadas por Gadamer. Essas duas conexões, destacamos, são ligadas ao modo
como ser se compreende no mundo levando em conta que a sua compreensão de si é
sempre no âmbito de um entendimento concreto sobre como agir à luz dos
elementos simbólicos que ele recebeu e visualiza na tradição. A primeira delas
se refere a como o hábito e o caráter modelam os indivíduos. Ao contrário das
ferramentas no saber da tekne as
pessoas não estão disponíveis instrumentalmente. Antes elas podem fazer
escolhas ao agir e agir pressupõe fazer escolhas dentre as escolhas que ela faz
, está a pessoa que ela pretende ser determinada pelo caráter que pretende ter.
O curso da ação que tomo é importante para a pessoa que pretendo me tornar. Já
a segunda se refere à ligação que a virtude tem com o curso da ação, pois o que
a virtude é depende das ações que a realizam[19].
A terceira e ultima distinção feita
por Gadamer com relação ao saber prático a partir de Aristóteles se refere à syneses, a relação que se estabelece ao
se dar um conselho ético entre conselheiro e aconselhado. No domínio da tekne não é necessário estabelecer uma
relação para dar um conselho. Já na no âmbito do saber prático é preciso se
estabelecer uma relação de entendimento em que é necessário estar envolvido,
preocupado e simpático ao outro. O conselho ético, diz Gadamer, exige o mesmo
tipo de engajamento e interação na compreensão do problema que desenvolvemos
como buscamos entendimento sobre nós mesmos. Só é possível dar conselhos se
estamos diante de uma situação que é compreendida por nós como importante para
as nossas próprias vidas e para o nosso auto-entendimento[20].
O conselho então tem a mesma estrutura que o próprio saber ético, como bem
explicita Gerogia Warnke:
Nossa compreensão do que devemos fazer
em qualquer situação particular não é o conhecimento objetivo de um observador,
mas a compreensão engajada de alguém que deve agir. Tanto a ação ética e
aconselhamento ético para outros envolvem aplicar o conhecimento ético já
possuído por causa da prática, educação, e educação para situações novas e
diferentes em que essa aplicação altera o conhecimento ético e o caráter ético que
se tem e toma à frente em situações futuras de ação, que por sua vez são elas
próprias parcialmente determinadas pelas ações presentes[21].
Essas
mesmas considerações podem ser feitas no plano da comunidade política que
também são determinadas historicamente e devem fazer escolhas sob o horizonte
de uma tradição comum sobre os valores e normas que compreendem válidas e
adequadas para si. Assim como se dá a compreensão dos indivíduos no circulo
hermenêutico, as comunidades também empreendem o autoentendimento que parte da
tradição e dá continuidade a ela sem necessariamente romper com ela ou deixar
de apreendê-la criticamente. Nesse processo, além da temporalidade que
determina a saída da circularidade do entendimento hermenêutico, há um outro
elemento no pensamento de Gadamer que é importante para a experiência
hermenêutica e para o presente trabalho: a
experiência do outro (tu).
Segundo Gadamer, a experiência hermenêutica tem a ver com a
tradição, sendo esta que deve chegar
pela experiência. Porém, como explica, a tradição não é simplesmente um
acontecer que se pode conhecer e dominar pela experiência, mas é linguagem, isto é, fala por si mesma
como faz um tu[22].
Embora a tradição não confunda com o tu, Gadamer está querendo dizer que a
nossa experiência de compreensão da tradição pode ser analisada a partir da
experiência de compreensão do outro, uma vez que o interprete que compreende
sua situação no mundo trava um diálogo com a tradição assim como com os demais
interpretes com que ele convive numa mesma situação histórica. Assim, tanto
tradição como o tu não são objetos,
mas verdadeiros companheiros de comunicação ao qual todos estamos vinculados[23].
Gadamer perpassa pelo menos três
formas de experiência do tu que são
apropriadas pela experiência hermenêutica. A primeira delas é a experiência do
tu que temos observando o comportamento dos outros. Ele entende que
compreendemos o outro da mesma maneira que compreendemos qualquer processo
típico dentro do nosso campo de experiência, isto é, podemos contar com o tu. Em que sentido? No sentido de que
seu comportamento é avaliado por nós e nos serve muitas como meio para nossos
fins, como faria qualquer outro meio.
Porém, este tipo de comportamento voltado para o tu tem apenas o sentido superficial da autorreferência e contradiz
a determinação moral do homem. Do ponto de vista hermenêutico, essa compreensão
do outro recai na ingenuidade de se poder determinar comportamentos regulares
pelo meio do método das ciências naturais. Como consequência, essa apreensão do
tu converte a tradição em objeto e
pretende se confrontar com ela “livremente” achando que é possível livrar-se
dos preconceitos enquanto condição predicativa da compreensão. O resultado
dessa forma de experiência do tu é o
nivelamento e miopia da experiência humana e hermenêutica.[24]
A segunda forma de experiência do tu consiste em reconhecê-lo como pessoa,
porém mantendo a referência a si mesmo apesar de incluí-lo na experiência. Para
Gadamer esta autorreferência procede da aparência dialética que a dialética da
relação eu-tu carrega. Nesse tipo de relação opera-se uma reflexividade que
suprime a imediaticidade da compreensão do tu,
conduzindo a uma relação em que toda pretensão implica numa contrapretensão
possibilitando que cada parte da relação possa saltar uma sobre a outra. Gadamer
entende que este processo leva o indivíduo a querer conhecer por si mesmo a
pretensão do outro, querendo, inclusive, entendê-lo melhor do que ele mesmo se
entende. Com isso o tu perde a
imediatez com que orienta suas pretensões a respeito de alguém[25].
Podemos dizer que aqui, se opera a perda da espontaneidade na compreensão em
nome de uma reflexão sem fim que só acarreta um falso ônus cognitivo, pois não
preciso de toda essa hiper-reflexão para compreender o tu, e um exercício da dominação, pois suprimo o outro quando quero
entendê-lo a partir das minhas próprias referências[26].
Na experiência hermenêutica essa
apreensão do outro desemboca na consciência
histórica. Gadamer explica que a consciência histórica tem conhecimento do
outro e do passado em sua alteridade, tal qual como a compreensão do tu tem
notícia do mesmo como pessoal. Apesar da consciência histórica não buscar a
regularidade geral, a sua pretensão de reconhecimento reflexivo sem o outro se
eleva por inteiro acima de seu próprio condicionamento e fica aprisionado na
dialética por querer se tornar senhora do passado. A consciência histórica
perde seu contato com a tradição por querer distanciar sua finitude da historia
que lhe chega transmitida pela própria tradição. O abandono dos preconceitos
como ponto de partida e confiança em procedimentos faz com que negue seu
próprio condicionamento histórico. O resultado e perda da vinculatividade moral
da reciprocidade, pois quem sai reflexivamente da relação vital com a tradição
destrói o verdadeiro sentido dela[27].
O nível autêntico mesmo em que se
pode ter a experiência do tu e a
relação com a tradição se dá quando se opera a abertura à tradição que possuir
a consciência da história efeitual.
Nas relações de alteridade o que importa é experimentar o outro realmente como
o outro, explica Gadamer, não passar por alto sua pretensão e deixar-se falar
algo por ele. Todavia, há outra dimensão dessa abertura, pois aquele que em
geral se deixa dizer algo está aberto de maneira fundamental. Não basta apenas
a abertura do outro, ambos tem de estar abertos ao diálogo para que exista um
verdadeiro vínculo humano. A pertença recíproca só é possível quando sempre e
ao mesmo tempo pode-se-ouvir-se-uns-aos-outros. Gadamer explica que, quando
duas ou mais pessoas se compreendem isto não quer dizer que um compreende ao
outro de cima para baixo, mas que um ouve ao outro em iguais condições de
escuta. A abertura ao outro implica, pois, o reconhecimento de que devo estar
disposto a deixar valer em mim algo contra mim, ainda que não haja nenhum outro
que vá fazer valer contra mim.[28]
Na experiência hermenêutica com
tradição, a abertura nos mostra que eu tenho de deixar valer a tradição em suas
próprias pretensões, e não no sentido de um mero reconhecimento com a
alteridade do passado, mas na forma em que ela tenha algo a me dizer. Gadamer
chama atenção que também isto requer uma forma fundamental de abertura. O que
está aberto à tradição desta maneira vê que a consciência histórica não está
realmente aberta, pois já tomou uma atitude niveladora ao ler o passado não
permitindo que os seus próprios padrões de saber possam ser postos em questão. Ao
contrário, a consciência da historia
efeitual vai mais além uma vez que não pretende comparar e igualar o
passado e a tradição. Agora, a tradição se converte em experiência ao mesmo
tempo em que se mantém aberta à pretensão de verdade que vai ao encontro dela.
A certeza não está mais no método, mas na disposição a estar em uma experiência
que caracteriza o homem experimentado face ao que está preso dogmaticamente. A
abertura ao outro permite que eu possa me abrir. A abertura à tradição permite
que eu possa ampliar a tradição[29].
No plano da ética, as relações entre
os sujeitos determinadas pelo saber prático em contraposição ao saber teórico e
a tekne passam a serem compreendidas
por meio da experiência hermenêutica. A abertura ao outro e a tradição nos
permite pensar que no âmbito da convivência entre os indivíduos e as
comunidades pode se desenvolver uma experiência hermenêutica que pode ao mesmo
tempo preservar as características de cada tradição e abri-las a um
redimensionamento a partir da própria compreensão que cada tradição pode
desenvolver de si quando com contato com as demais. No âmbito interno das
comunidades é também possível pensar o desenvolvimento de laços de amizade e
solidariedade como elementos capazes de preservar a coesão social porque
possibilitam a experiência hermenêutica. Eis então que a amizade, conforme
veremos abaixo, é por si só um bem que demanda por sua estrutura a compreensão
hermenêutica.
[1]
Trabalho apresentado como parte integrante da avaliação da disciplina Ontologia
e Método III ministrada pelo Prof. Dr. Roberto Wu no Programa de Pós-graduação
em Filosofia da Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC, 1º semestre de
2012.
[2]
Doutorando pelo Programa de Pós-graduação em Filosofia da Universidade Federal
de Santa Catarina – UFSC. Bolsista-CAPES. Atualmente desenvolvo projeto sobre A
Legitimidade das Intervenções Humanitárias a partir de Rawls, Habermas e Höffe
na linha de pesquisa Ética e Filosofia Política. Email para contato: davisilva.adv@gmail.com.
[3] GADAMER, H. G. Friendship and Solidarity.
Research in Phenemonology, Leiden, vol.
39, issue 1, 2009, p. 3-12.
[4] Id., What is Practice? The Conditions of Social Reason. Reason in the Age of Science. Translated
by Frederick G. Lawrence. MIT Press Publishing, 10th Edition, p. 71.
[5]
Id., ibidem. p.72.
[6]
Chris Lawn, por exemplo, chega a afirmar que “não parece haver uma única
referência à noção de solidariedade em Verdade
e Método”. Cf. LAWN, Chris. Compreender
Gadamer. Tradução de Hélio Magri Filho Vozes: Petrópolis, 2007, p. 140.
[7] WARNKE, Georgia. Hermeneutics, Ethics and Politics. In:
DOSTAL, ROBERT J. Cambridge Companion to
Gadamer. Cambridge Press: Cambridge, 2002, p. 79.
[8] Id., ibidem, p. 79.
[9] LAWN, Chris; KEANE, Niall. The Gadamer Dictionary. Continuum
International: London, 2011, p. 46.
[10] GADAMER, H. G. Verdade e Método: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. Vozes: Petrópolis, 4ª edição, 2002 p. 451.
[11] WARNKE, Georgia. Hermeneutics, Ethics and Politics. In:
DOSTAL, ROBERT J. Cambridge Companion to
Gadamer. Cambridge Press: Cambridge, 2002, p. 81.
[12]
GADAMER, H. G. Verdade e Método: traços
fundamentais de uma hermenêutica filosófica. Vozes: Petrópolis, 4ª edição, 2002, p. 465.
[13]WARNKE, Georgia. Hermeneutics, Ethics and Politics. In: DOSTAL, ROBERT J. Cambridge Companion to Gadamer. Cambridge
Press: Cambridge, 2002, p.82.
[14]
GADAMER, H. G. Verdade e Método: traços
fundamentais de uma hermenêutica filosófica. Vozes: Petrópolis, 4ª edição,
2002, p. 466.
[15]
Id., ibidem, p.472.
[16] WARNKE, Georgia. Hermeneutics, Ethics and Politics. In: DOSTAL, ROBERT J. Cambridge Companion to Gadamer. Cambridge
Press: Cambridge, 2002, p. 84.
[17]
Id., ibidem, p. 84.
[18] WARNKE, Georgia. Hermeneutics, Ethics and Politics. In: DOSTAL, ROBERT J. Cambridge Companion to Gadamer. Cambridge
Press: Cambridge, 2002, p.
84.
[19]
Id., ibidem, p. 85.
[20]
Id., ibidem, p.86.
[21] WARNKE, Georgia. Hermeneutics, Ethics and Politics. In: DOSTAL, ROBERT J. Cambridge Companion to Gadamer. Cambridge
Press: Cambridge, 2002, p.86.
[22]
GADAMER, H. G. Verdade e Método: traços
fundamentais de uma hermenêutica filosófica. Vozes: Petrópolis, 4ª edição,
2002, p. 528.
[23]
Id., ibidem, p. 528.
[24]
GADAMER, H. G. Verdade e Método: traços
fundamentais de uma hermenêutica filosófica. Vozes: Petrópolis, 4ª edição, 2002,
p. 529.
[25]
Id., ibidem, p. 530.
[26]
Id., ibidem, p. 531.
[27]
GADAMER, H. G. Verdade e Método: traços
fundamentais de uma hermenêutica filosófica. Vozes: Petrópolis, 4ª edição,
2002, p. 532.
[28]
Id., ibidem, p. 532.
[29]
Id., ibidem, p.533.
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