segunda-feira, 2 de julho de 2012

Apontamentos sobre a experiência do Outro, Amizade e Solidariedade em Gadamer.

Venho desenvolvendo um interesse por estudar a solidariedade. Surgiu a oportunidade de vê-la em Gadamer na disciplina do Prof. Roberto Wu. Ainda está em fase de desenvolvimento, mas publico aqui os apontamentos preliminares de um estudo que pretendo aprofundar.


Apontamentos sobre a experiência do Outro, amizade e solidariedade em H. G. Gadamer[1].
Davi José de Souza da Silva[2]

RESUMO: Pretendemos com o presente trabalho apresentar as principais nuances de como pensar a solidariedade a partir de H. G. Gadamer e sua hermenêutica filosófica. Para isso dividimos nosso trabalho em três partes. (1) No primeiro momento iremos explicitar o que Gadamer entende por ética e como esta está ligada a experiência hermenêutica do outro (tu) com intuito de destacar a importância da alteridade na compreensão prática. (2) Em seguida, iremos ver como a experiência do outro (tu) é ligada à amizade como uma experiência fenomenológica do partilhar. Esse ponto tem por objetivo explicitar que a experiência da alteridade preserva como ponto importante a mantença da diferença. (3) Por último, como pode ser compreendida a solidariedade a partir de Gadamer, assim como podem ser considerados seus reflexos no domínio do político.  

Palavras Chaves: solidariedade, amizade, ética, hermenêutica, compreensão.
           
            Discutir o que se pode compreender sobre solidariedade é uma proposta atual e importante para as pessoas e para os cidadãos. Em nossa época de comunicação midiática e fluxos de informações digitalizadas diminui o anonimato e aumenta a indiferença. Sabemos quem foram os responsáveis pelos últimos assaltos, homicídios ou subornos político, porém pouca ação se desdobra das preocupações éticas que muitas vezes sequer empreendemos nosso cotidiano. Talvez tenhamos perdido o sentido daquilo que é mais fundamental para ser compartilhado em uma comunidade e estejamos perdidos num processo de desencantamento em que a busca dos interesses e o individualismo prevalecem de uma forma patológica ultrapassando os âmbitos que lhes são próprios, corroendo outras esferas de convivência e relações humanas como a amizade, o amor e a solidariedade. Aparentemente, bate à porta a possibilidade de um processo de desintegração cada vez maior dos laços que outrora permitiram a formação das sociedades.
          
          Com o presente trabalho queremos resgatar uma possibilidade de reação a esses problemas seguindo os passos de H. G. Gadamer e sua hermenêutica filosófica. Como filosofo da práxis, Gadamer não se furtou a interpretar seu tempo para enfrentar problemas de uma época em que a responsabilidade se tornou anônima, conceito que atribui a seu predecessor em Heidelberg, Karl Jaspers. Para Gadamer este é

Um termo que, diante de seu tempo, está se tornando cada vez mais verdadeiro. Tornou-se tão diretamente cheio de verdade que hoje em dia existem clínicas onde o paciente já não tem um nome, mas recebe um número. Na verdade, a questão que devemos com toda a seriedade nos perguntar é como aquelas coisas que sustentam a felicidade humana podem ser desenvolvidas e preservadas nas novas formas de vida que surgem a partir da Revolução Industrial e suas consequências[3].
        Com o desenvolvimento técnico científico deflagrado desde Galileu somos levados a questionar junto com Gadamer que ganhos temos com tamanha disponibilidade técnica e instrumental.[4] A assimetria entre o desenvolvimento tecnológico e a diminuição da coesão social é para Gadamer um problema que se agudiza na invasão do discurso técnico científico sobre os elementos fundamentais vida social:
A tecnologização da natureza e do ambiente natural, com todos os seus efeitos de longo alcance, ergue-se sob a rubrica de racionalização, desmistificação, desmitologização, o desmantelamento de precipitada correspondências antropomórfica. Por fim, a viabilidade econômica, roda de novo equilíbrio do implacável processo de mudança em nosso século, torna-se cada vez mais uma forte força social. Tudo isso é característico da maturidade ou, se quiserem, da crise da nossa civilização, pois o século XX é o primeiro a ser determinado novamente de forma decisiva pela tecnologia, com o início da transferência de conhecimentos técnicos a partir do domínio das forças da natureza para a vida social[5].
       Diante desse quadro é que surge a importância de pensar a partir da hermenêutica filosófica a solidariedade. Embora não seja o objeto principal de Verdade e Método[6], é na opus magnum de Gadamer que estão os conceitos fundamentais para compreendê-la. Assim, (1) na primeira parte desse trabalho iremos explicitar o que Gadamer entende por ética e como esta está ligada a experiência hermenêutica do outro (tu) com intuito de destacar a importância da alteridade na compreensão prática. (2) Em seguida, iremos ver como a experiência do outro (tu) é ligada à amizade como um primeiro nível de experiência fenomenológica do partilhar. Esse ponto tem por objetivo explicitar que a experiência da alteridade preserva como ponto importante a mantença da diferença. (3) Por último, como pode ser compreendida a solidariedade a partir de Gadamer.


(1)   

            Se já pudemos destacar que Gadamer não deixou de pensar a aplicabilidade de sua hermenêutica filosófica aos problemas contemporâneos, Georgia Warnke destaca que o pensamento gadameriano é bastante rico e amplo para se pensar as questões éticas e políticas de nosso tempo, guardando até mesmo um potencial muito maior em termos democráticos e não autoritários do que outras visões por ela analisadas no seu artigo Hermeneutics, Ethics and Politics[7]. Nesse artigo nos interessa a reconstrução que ela faz da situação hermenêutica como ponto de partida para a experiência hermenêutica. Esta, por sua vez, revela que o entendimento é uma experiência intersubjetiva que necessariamente pressupõe o outro (tu). Queremos acompanhá-la nessas explicações para caracterizar bem o tipo específico de experiência que se pode desenvolver no plano da compreensão hermenêutica para, em seguida, comparar com a experiência da amizade e, ao final, com a solidariedade.
          A situação hermenêutica em Gadamer, segundo Georgia Warnke, acompanha o pensamento de Heidegger ao entender que os indivíduos estão desde já lançados na história de um quadro de estórias do qual não iniciamos e também não iremos terminar, porém temos de dar continuidade[8]. Para Gadamer, a situação hermenêutica é dialógica, pois interprete e o que se interpreta encontram um ao outro, sendo este encontro de ambos determinado pela finitude da experiência humana, que por sua vez também determina que nossas tentativas de nos ligarmos ao fluxo da consciência da história efetiva (Wirkungsgeschichte) é sempre incompleta[9]. No plano da ética, para que possamos agir temos de nos compreender como parte de uma história cujo entendimento implica em compreender quem nós somos e quem nós queremos ser. Nesse processo de entendimento, é importante saber que o nosso ser é determinado pelo fluxo da história que nos transmite no interior de uma tradição o qual pertencemos nossos pré-conceitos, cujo conjunto forma o ponto de partida para o entendimento[10].
         Essa forma de compreender necessária para agir é circular e conduz Gadamer, explica Georgia Warnke, à reformulação do círculo hermenêutico proposto por Schleiermacher. Gadamer entende que o texto fundamental que tem de ser compreendido são as narrativas em que nos encontramos. Os questionamentos acima feitos para nós mesmos no sentido de buscar a compreensão do nosso lugar histórico no mundo.  Somos seres históricos localizados em determinadas culturas, línguas, regiões, heranças culturais, etc. Essa temporalidade é que faz com que o círculo não se torne vicioso, pois quando queremos entender a nós mesmos inevitavelmente nós partidos da nossa posição atual na história que, por sua contingência, não será completa e precisará que outras pessoas possam dar continuidade às linhas de transmissão e compreensão da história[11].  
Uma vez que a compreensão que podemos ter é hermenêutica e se dá no curso da história, a ética e a política enquanto conhecimento prático também não pode abdicar do enraizamento histórico. Esse raciocínio conduz Gadamer a pensar uma filosófica prática que não seja desligada da práxis dos agentes, levando a Aristóteles, pois:
Se o próprio núcleo do problema hermenêutico é que a tradição como tal tem de ser entendida de uma maneira diferente, então – visto sob ponto de vista lógico – trata-se de uma relação entre o geral e o particular. Compreende é então um casão da aplicação de algo geral a uma situação concreta e particular. Com isso ganha especial relevância para nós a ética aristotélica, de que já mencionamos nas nossas considerações introdutórias à teoria das ciências do espírito. É verdade que Aristóteles não aborda o problema do circulo hermenêutico nem sua dimensão histórica, mas trata somente da apreciação correta do papel que a razão deve desempenhar na atuação ética. Mas é isso precisamente que nos interessa aqui, que ali trata-se de razão e de saber, que não estão separados do ser que deveio, mas que são determinados por este e que são determinantes para este ser[12].
            Gadamer se posiciona pela ética aristotélica pelo seu sentido prático estar ligado ao ser. Com ela fica estabelecida a distinção entre razão teórica e razão prática pensada na ação humana. O que nós podemos entender como bem no sentido teórico é algo completamente diferente do que podemos entender como correto a se fazer no sentido prático. A teoria ética passa então a ser uma teoria pragmática no sentido de ser voltada para a realização do bem numa situação concreta, dada, em que se vê o sujeito. O conhecimento prático é um conhecimento para a ação do sujeito e não um conhecimento sobre objetos que pode ser discernido a partir da observação, antes, ele exige engajamento, interação, uma prática intersubjetiva com o outro que se estabelece num nível muito mais concreto do que a especulação teórica[13]: Assim:
O conjunto da ética humana se distingue essencialmente da natureza através do fato de que nela não atuam simplesmente capacidades ou forças, mas pelo fato de que o homem vem a ser tal como veio a ser, somente através do que faz e de como se comporta, isto significa, porém: sendo assim, se comporta de uma maneira. Aristóteles opõe ethos à physis, como sendo um âmbito, no qual não é não seja comandado por regras, mas que não conhece as leis da natureza, a não ser a mutabilidade e regularidades limitadas das posturas humanas e de suas formas de comportamento[14].
            O conhecimento prático, ético, não é o conhecimento teórico. Ele exige uma prática em que as pessoas possam desenvolver sua consciência moral. Gadamer então retoma Aristóteles e a análise da phronesis para fazer a distinção entre saber apoiado na tekne e o saber ético. Diferentemente da tekne, o saber ético não pode ser aprendido nem esquecido, pois ele não é apropriado como se fosse uma coisa, tampouco é algo que pode ser eleito como um objetivo. Antes, acentua Gadamer, desde sempre nos encontramos em uma situação em que temos de atuar e, por conseguinte, temos de já sempre possuir e aplicar o saber ético. Muito menos do que regras, o saber prático é constituído de imagens que o homem forma sobre o que ele deve ser, sobre o justo ou injusto, sobre decência, coragem, dignidade, solidariedade, são imagens do plano simbólico que nos conduzem, que nos dão as diretrizes[15]. Ao saber prático então se colocam os mesmos fundamentos da compreensão hermenêutica, pois as imagens que recebemos sob as quais nos movemos na situação concreta são as imagens que nos são legadas pela tradição, assim como as escolhas que temos de fazer sob este quadro simbólico dependem da compreensão de nós mesmos, de nossos projetos de vida e de como nos relacionamos com os outros em nossa existência determinada historicamente.
            Georgia Warnke destaca pelo menos três aspectos na análise de Gadamer sobre a diferença entre o saber técnico e o saber ético. Conforme tratamos acima, o saber prático não é um bem que está à disposição dos sujeitos, nós não podemos escolher aplicá-lo, nós estamos sempre o exercendo por meio de nossas ações. Esta é a característica da não discricionariedade do saber ético que é constitutivo do sentido expresso acima de que o saber ético não é desprendido do ser que está sendo, mas, antes, determinado por ele. Na aplicação do saber ético sua determinação se dá na história que não se encerra com o sujeito finito, sendo a historicidade ao mesmo tempo a definidora da situação hermenêutica e o raio em que se pode atuar.[16]
            A segunda distinção levantada por Georgia Warnke é outra modalidade de não discricionariedade. Na primeira tratada acima, a não discricionariedade se dá no âmbito da escolha entre saber técnico e saber prático. Como somos seres históricos não temos como escolher entre usar ou não o saber prático, pois em cada ação que realizamos nos movemos diante das imagens de mundo que nos são legadas pela tradição e temos de fazer escolhas fundamentais sobre o projeto de nosso ser. Agora, essa segunda modalidade de não discricionariedade se refere ao modo como utilizamos o saber prático. Este sempre se na forma da aplicação de um problema de compreensão hermenêutica, de entendimento sobre nós mesmos, nosso passado e nossas escolhas sobre o futuro[17]. Na medida em que o saber prático é aplicado nossa compreensão do próprio saber prático é alterada por sua aplicação. Ao mesmo tempo em que ele só pode ser exercido pela aplicação ele se transforma na aplicação.  Essa transformação não se dá no âmbito da tekne.
Quando construo uma casa ou aprendo a dirigir um carro o faço por meio da aplicação de um saber técnico. Os imprevistos, as lições, a repetição, o exercício do artesanato ou da prática da direção poderão tornar a obra ou a perícia automobilística maior ou menor. Porém, o ideal de uma casa bem construída ou de um excelente piloto não será alterado. Nossa prática, no caso da tekne, apenas nos tornou mais habilidosos. No entanto, no saber prático o agir nunca é independente da ação em si, não sendo possível separar meios dos fins tal qual fazemos com o saber técnico. A aplicação do saber prático sempre envolve os meios e os fins. As virtudes e os fins em causa são parcialmente determinados pela ação que se desenvolve para alcançá-los. Como explica Georgia Warnke, a isso se associa que o saber prático é sempre uma aplicação de nosso entendimento sobre nós mesmos como seres virtuosos[18].
A importante relação entre meios e fins que se estabelece no plano do saber prático se dá por conta de duas conexões entrevistas por Aristóteles que são enfatizadas por Gadamer. Essas duas conexões, destacamos, são ligadas ao modo como ser se compreende no mundo levando em conta que a sua compreensão de si é sempre no âmbito de um entendimento concreto sobre como agir à luz dos elementos simbólicos que ele recebeu e visualiza na tradição. A primeira delas se refere a como o hábito e o caráter modelam os indivíduos. Ao contrário das ferramentas no saber da tekne as pessoas não estão disponíveis instrumentalmente. Antes elas podem fazer escolhas ao agir e agir pressupõe fazer escolhas dentre as escolhas que ela faz , está a pessoa que ela pretende ser determinada pelo caráter que pretende ter. O curso da ação que tomo é importante para a pessoa que pretendo me tornar. Já a segunda se refere à ligação que a virtude tem com o curso da ação, pois o que a virtude é depende das ações que a realizam[19].
            A terceira e ultima distinção feita por Gadamer com relação ao saber prático a partir de Aristóteles se refere à syneses, a relação que se estabelece ao se dar um conselho ético entre conselheiro e aconselhado. No domínio da tekne não é necessário estabelecer uma relação para dar um conselho. Já na no âmbito do saber prático é preciso se estabelecer uma relação de entendimento em que é necessário estar envolvido, preocupado e simpático ao outro. O conselho ético, diz Gadamer, exige o mesmo tipo de engajamento e interação na compreensão do problema que desenvolvemos como buscamos entendimento sobre nós mesmos. Só é possível dar conselhos se estamos diante de uma situação que é compreendida por nós como importante para as nossas próprias vidas e para o nosso auto-entendimento[20]. O conselho então tem a mesma estrutura que o próprio saber ético, como bem explicita Gerogia Warnke:
Nossa compreensão do que devemos fazer em qualquer situação particular não é o conhecimento objetivo de um observador, mas a compreensão engajada de alguém que deve agir. Tanto a ação ética e aconselhamento ético para outros envolvem aplicar o conhecimento ético já possuído por causa da prática, educação, e educação para situações novas e diferentes em que essa aplicação altera o conhecimento ético e o caráter ético que se tem e toma à frente em situações futuras de ação, que por sua vez são elas próprias parcialmente determinadas pelas ações presentes[21].
Essas mesmas considerações podem ser feitas no plano da comunidade política que também são determinadas historicamente e devem fazer escolhas sob o horizonte de uma tradição comum sobre os valores e normas que compreendem válidas e adequadas para si. Assim como se dá a compreensão dos indivíduos no circulo hermenêutico, as comunidades também empreendem o autoentendimento que parte da tradição e dá continuidade a ela sem necessariamente romper com ela ou deixar de apreendê-la criticamente. Nesse processo, além da temporalidade que determina a saída da circularidade do entendimento hermenêutico, há um outro elemento no pensamento de Gadamer que é importante para a experiência hermenêutica e para o presente trabalho: a experiência do outro (tu). 
            Segundo Gadamer, a experiência hermenêutica tem a ver com a tradição, sendo esta que deve chegar pela experiência. Porém, como explica, a tradição não é simplesmente um acontecer que se pode conhecer e dominar pela experiência, mas é linguagem, isto é, fala por si mesma como faz um tu[22].  Embora a tradição não confunda com o tu, Gadamer está querendo dizer que a nossa experiência de compreensão da tradição pode ser analisada a partir da experiência de compreensão do outro, uma vez que o interprete que compreende sua situação no mundo trava um diálogo com a tradição assim como com os demais interpretes com que ele convive numa mesma situação histórica. Assim, tanto tradição como o tu não são objetos, mas verdadeiros companheiros de comunicação ao qual todos estamos vinculados[23].  
            Gadamer perpassa pelo menos três formas de experiência do tu que são apropriadas pela experiência hermenêutica. A primeira delas é a experiência do tu que temos observando o comportamento dos outros. Ele entende que compreendemos o outro da mesma maneira que compreendemos qualquer processo típico dentro do nosso campo de experiência, isto é, podemos contar com o tu. Em que sentido? No sentido de que seu comportamento é avaliado por nós e nos serve muitas como meio para nossos fins, como faria qualquer outro meio.  Porém, este tipo de comportamento voltado para o tu tem apenas o sentido superficial da autorreferência e contradiz a determinação moral do homem. Do ponto de vista hermenêutico, essa compreensão do outro recai na ingenuidade de se poder determinar comportamentos regulares pelo meio do método das ciências naturais. Como consequência, essa apreensão do tu converte a tradição em objeto e pretende se confrontar com ela “livremente” achando que é possível livrar-se dos preconceitos enquanto condição predicativa da compreensão. O resultado dessa forma de experiência do tu é o nivelamento e miopia da experiência humana e hermenêutica.[24]  
            A segunda forma de experiência do tu consiste em reconhecê-lo como pessoa, porém mantendo a referência a si mesmo apesar de incluí-lo na experiência. Para Gadamer esta autorreferência procede da aparência dialética que a dialética da relação eu-tu carrega. Nesse tipo de relação opera-se uma reflexividade que suprime a imediaticidade da compreensão do tu, conduzindo a uma relação em que toda pretensão implica numa contrapretensão possibilitando que cada parte da relação possa saltar uma sobre a outra. Gadamer entende que este processo leva o indivíduo a querer conhecer por si mesmo a pretensão do outro, querendo, inclusive, entendê-lo melhor do que ele mesmo se entende. Com isso o tu perde a imediatez com que orienta suas pretensões a respeito de alguém[25]. Podemos dizer que aqui, se opera a perda da espontaneidade na compreensão em nome de uma reflexão sem fim que só acarreta um falso ônus cognitivo, pois não preciso de toda essa hiper-reflexão para compreender o tu, e um exercício da dominação, pois suprimo o outro quando quero entendê-lo a partir das minhas próprias referências[26].
            Na experiência hermenêutica essa apreensão do outro desemboca na consciência histórica. Gadamer explica que a consciência histórica tem conhecimento do outro e do passado em sua alteridade, tal qual como a compreensão do tu tem notícia do mesmo como pessoal. Apesar da consciência histórica não buscar a regularidade geral, a sua pretensão de reconhecimento reflexivo sem o outro se eleva por inteiro acima de seu próprio condicionamento e fica aprisionado na dialética por querer se tornar senhora do passado. A consciência histórica perde seu contato com a tradição por querer distanciar sua finitude da historia que lhe chega transmitida pela própria tradição. O abandono dos preconceitos como ponto de partida e confiança em procedimentos faz com que negue seu próprio condicionamento histórico. O resultado e perda da vinculatividade moral da reciprocidade, pois quem sai reflexivamente da relação vital com a tradição destrói o verdadeiro sentido dela[27].
            O nível autêntico mesmo em que se pode ter a experiência do tu e a relação com a tradição se dá quando se opera a abertura à tradição que possuir a consciência da história efeitual. Nas relações de alteridade o que importa é experimentar o outro realmente como o outro, explica Gadamer, não passar por alto sua pretensão e deixar-se falar algo por ele. Todavia, há outra dimensão dessa abertura, pois aquele que em geral se deixa dizer algo está aberto de maneira fundamental. Não basta apenas a abertura do outro, ambos tem de estar abertos ao diálogo para que exista um verdadeiro vínculo humano. A pertença recíproca só é possível quando sempre e ao mesmo tempo pode-se-ouvir-se-uns-aos-outros. Gadamer explica que, quando duas ou mais pessoas se compreendem isto não quer dizer que um compreende ao outro de cima para baixo, mas que um ouve ao outro em iguais condições de escuta. A abertura ao outro implica, pois, o reconhecimento de que devo estar disposto a deixar valer em mim algo contra mim, ainda que não haja nenhum outro que vá fazer valer contra mim.[28]
            Na experiência hermenêutica com tradição, a abertura nos mostra que eu tenho de deixar valer a tradição em suas próprias pretensões, e não no sentido de um mero reconhecimento com a alteridade do passado, mas na forma em que ela tenha algo a me dizer. Gadamer chama atenção que também isto requer uma forma fundamental de abertura. O que está aberto à tradição desta maneira vê que a consciência histórica não está realmente aberta, pois já tomou uma atitude niveladora ao ler o passado não permitindo que os seus próprios padrões de saber possam ser postos em questão. Ao contrário, a consciência da historia efeitual vai mais além uma vez que não pretende comparar e igualar o passado e a tradição. Agora, a tradição se converte em experiência ao mesmo tempo em que se mantém aberta à pretensão de verdade que vai ao encontro dela. A certeza não está mais no método, mas na disposição a estar em uma experiência que caracteriza o homem experimentado face ao que está preso dogmaticamente. A abertura ao outro permite que eu possa me abrir. A abertura à tradição permite que eu possa ampliar a tradição[29].
            No plano da ética, as relações entre os sujeitos determinadas pelo saber prático em contraposição ao saber teórico e a tekne passam a serem compreendidas por meio da experiência hermenêutica. A abertura ao outro e a tradição nos permite pensar que no âmbito da convivência entre os indivíduos e as comunidades pode se desenvolver uma experiência hermenêutica que pode ao mesmo tempo preservar as características de cada tradição e abri-las a um redimensionamento a partir da própria compreensão que cada tradição pode desenvolver de si quando com contato com as demais. No âmbito interno das comunidades é também possível pensar o desenvolvimento de laços de amizade e solidariedade como elementos capazes de preservar a coesão social porque possibilitam a experiência hermenêutica. Eis então que a amizade, conforme veremos abaixo, é por si só um bem que demanda por sua estrutura a compreensão hermenêutica.



[1] Trabalho apresentado como parte integrante da avaliação da disciplina Ontologia e Método III ministrada pelo Prof. Dr. Roberto Wu no Programa de Pós-graduação em Filosofia da Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC, 1º semestre de 2012.
[2] Doutorando pelo Programa de Pós-graduação em Filosofia da Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC. Bolsista-CAPES. Atualmente desenvolvo projeto sobre A Legitimidade das Intervenções Humanitárias a partir de Rawls, Habermas e Höffe na linha de pesquisa Ética e Filosofia Política. Email para contato: davisilva.adv@gmail.com
[3] GADAMER, H. G. Friendship and Solidarity. Research in Phenemonology, Leiden, vol. 39, issue 1, 2009, p. 3-12.   
[4] Id., What is Practice? The Conditions of Social Reason. Reason in the Age of Science. Translated by Frederick G. Lawrence. MIT Press Publishing, 10th Edition, p. 71.
[5] Id., ibidem. p.72.
[6] Chris Lawn, por exemplo, chega a afirmar que “não parece haver uma única referência à noção de solidariedade em Verdade e Método”. Cf. LAWN, Chris. Compreender Gadamer. Tradução de Hélio Magri Filho Vozes: Petrópolis, 2007, p. 140.
[7] WARNKE, Georgia. Hermeneutics, Ethics and Politics. In: DOSTAL, ROBERT J. Cambridge Companion to Gadamer. Cambridge Press: Cambridge, 2002, p. 79.
[8] Id., ibidem, p. 79.
[9] LAWN, Chris; KEANE, Niall. The Gadamer Dictionary. Continuum International: London, 2011, p. 46.
[10] GADAMER, H. G. Verdade e Método: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. Vozes: Petrópolis, 4ª edição, 2002 p. 451.
[11] WARNKE, Georgia. Hermeneutics, Ethics and Politics. In: DOSTAL, ROBERT J. Cambridge Companion to Gadamer. Cambridge Press: Cambridge, 2002, p. 81.
[12] GADAMER, H. G. Verdade e Método: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. Vozes: Petrópolis, 4ª edição, 2002, p. 465.
[13]WARNKE, Georgia. Hermeneutics, Ethics and Politics. In: DOSTAL, ROBERT J. Cambridge Companion to Gadamer. Cambridge Press: Cambridge, 2002, p.82.
[14] GADAMER, H. G. Verdade e Método: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. Vozes: Petrópolis, 4ª edição, 2002, p. 466.
[15] Id., ibidem, p.472.
[16] WARNKE, Georgia. Hermeneutics, Ethics and Politics. In: DOSTAL, ROBERT J. Cambridge Companion to Gadamer. Cambridge Press: Cambridge, 2002, p. 84.
[17] Id., ibidem, p. 84.
[18] WARNKE, Georgia. Hermeneutics, Ethics and Politics. In: DOSTAL, ROBERT J. Cambridge Companion to Gadamer. Cambridge Press: Cambridge, 2002, p. 84.
[19] Id., ibidem, p. 85.
[20] Id., ibidem, p.86.
[21] WARNKE, Georgia. Hermeneutics, Ethics and Politics. In: DOSTAL, ROBERT J. Cambridge Companion to Gadamer. Cambridge Press: Cambridge, 2002, p.86.
[22] GADAMER, H. G. Verdade e Método: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. Vozes: Petrópolis, 4ª edição, 2002, p. 528.
[23] Id., ibidem, p. 528.
[24] GADAMER, H. G. Verdade e Método: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. Vozes: Petrópolis, 4ª edição, 2002, p. 529.
[25] Id., ibidem, p. 530.
[26] Id., ibidem, p. 531.
[27] GADAMER, H. G. Verdade e Método: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. Vozes: Petrópolis, 4ª edição, 2002, p. 532.
[28] Id., ibidem, p. 532.
[29] Id., ibidem, p.533.

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