segunda-feira, 2 de julho de 2012


Parte (2)

            Em 1990 Gadamer chamou a atenção para o fato de que os conflitos armados entre os povos ainda era, e é, algo preocupante. Diante da multiplicidade de povos que querem se afirmar belicamente uns aos outros, Gadamer expressou uma preocupação com uma catástrofe de proporções globais. A técnica e o progresso científico só tornaram ainda mais devastadoras as possibilidades de um conflito armado entre partes que querem se afirmar umas perante as outras hierarquicamente. Como um intelectual e filósofo sério ele se perguntou sobre como é possível salvar a humanidade de si mesma e desenvolver um espírito comunitário, a solidariedade necessária para a vontade de viver e sobreviver[1]. Nessa parte queremos demonstrar como a amizade pode responder num primeiro nível a esse desafio de possibilitar a compreensão entre os indivíduos e suas comunidades.
            Gadamer inicia sua compreensão da amizade demonstrando que hoje ela se tornou um termo que muitas vezes pretende cobrir uma vasta gama de fenômenos. Na nossa tradição cultural a amizade é um tema que vem desde os gregos.  Mas o que é a verdadeira amizade? E o que significa ser amigo num mundo de instituições compartilhadas e mercados, num mundo de diversidade de conflitos e entendimentos que tornam a ação comunitária possível? Ironicamente Gadamer agradece ao modo como nossa sociedade está anonimamente organizada para nos desafiar uma pergunta instigante: quem é o vizinho ao lado com quem vivemos? Será que perdemos o sentido de uma pertença a uma comunidade em que seja importante conhecer o nome das pessoas, compartilhar hábitos, ter tranquilidade?[2]
            Para saber no que consiste a verdadeira amizade Gadamer vai descrevendo uma série de fenômenos sob aos quais as pessoas costumam atribuir amizade. Com a referência aos diálogos de Sócrates, Gadamer aponta que seus interlocutores não podem conhecer mais do que uma amizade infantil. A ilustração serve para demonstrar que não há uma relação de reciprocidade, mas apenas uma competição pela atenção de Sócrates que, aparentemente, se diverte com a disputa. A amizade então não pode ser fundada no interesse, tampouco na disputa por atenção ou em relações assimétricas entre os indivíduos[3]. Será então que são os laços em comum determinados por aquilo que nós identificamos no outro como sendo nosso o que constitui a amizade? A familiaridade dos traços em comum, os mesmos gostos, histórias, traços em comum. Ao contrário do que se poderia esperar, Gadamer expõe que são as diferenças, muito mais do que as semelhanças, os elementos que aparentemente constituem a amizade.
            A dificuldade em determinar o que é a amizade percorre a história das ideias na filosofia. Todavia, para Gadamer, a verdadeira amizade é algo escondido e não algo que se pode estar tão perto. A amizade não pode ser determinada pelo que é igualmente encontrado nas pessoas ou pela admiração recíproca pelas diferenças uns dos outros. Com diversos exemplos que ilustra a discussão, como as crianças em torno de Sócrates ou o diálogo deste com Alcebíades, Gadamer quer demonstrar que a amizade não é um conceito abstrato que pode ser dividido em várias subespécies. Tampouco a verdadeira amizade pode ser fruto dos desejos, felicidades, prazeres, vantagens, negócios, etc. A verdadeira amizade não é um fruto da identidade entre os indivíduos, tampouco de um cálculo racional de um agente prudente. Gadamer nos lembra que o sentido originário da palavra Oikeion, hoje base para a palavra economia, era o termo usado por Sócrates para designar uma forma mais autêntica de socialização entre os indivíduos “the house-like/domestic” ou “the home-like/native”. O que nos é familiar? Isso é o constitutivo da amizade que Gadamer busca[4].
            Gadamer nos convida a perguntar o que hoje poderia ser considerado como nosso Oikeion? O estar-em-casa (at-home) do qual não se pode falar, mas podemos perceber quando falamos de nossa casa ou da nossa terra natal. A verdadeira amizade parte como primeiro pressuposto desse sentido de familiaridade que é tão profundo: pensar numa pertença não problematizada a uma tradição, uma pertença de não estranhamento de uma total integridade com a comunidade. A terra-natal é algo imemorial, apesar de não sabermos o que é que pode estabelecer tais vínculos tão profundos entre as pessoas, mas a pertença a uma terra natal e origem comuns representa uma conexão que Gadamer considera como um tipo de comunidade, uma modalidade de solidariedade que não requer que eu declare ser solidário, pois ela já é solidária em si e para si mesma. Mas qual é o segredo ainda não revelado dessa conexão autentica e primordial? Até aqui, pelo menos, foi possível acompanhar Gadamer no sentido de que uma amizade autentica e uma solidariedade autentica partem desse primeiro sentido de pertença a um locus específico no tempo e no espaço, na concretude das relações mais primordiais que os indivíduos podem desenvolver sem necessariamente terem de problematizar ou exercer uma reflexão racional que sempre chega depois ou perde a imediatez da compreensão hermenêutica.
            Gadamer novamente retoma os gregos para responder a pergunta acima. Existe uma palavra que é de fundamental importância para a compreensão da amizade: Philautia, “amor-próprio”. No amor-próprio nós trazemos à tona a verdadeira condição para todos os possíveis laços com os outros e o comprometimento para com nós mesmos. Aqui o amor-próprio não é a preservação egoística de nós mesmos, não é apenas pensar em nós mesmos e não no que o outro é ou o que é para o outro. Não é essa concepção reducionista de amor-próprio que Gadamer está resgatando dos gregos. O que Gadamer quer trazer à nossa consciência é o amor-próprio que é autêntico porque ele nos reconcilia nos tornando um com nós mesmos. Se nós pretendemos ser amigos, se nós pretendemos poder amar ou desenvolver laços de solidariedade,  é preciso trazer à tona o amor-próprio que nos permite ser um com nós mesmos[5]. Os laços profundos são desenvolvidos quando podemos nos conciliar em nossa individualidade com o outro, a experiência da alteridade tem de necessariamente fazer com que eu possa me abrir hermeneuticamente.
            Com o estar-em-casa Gadamer, entendemos, quis demonstrar como os laços de amizade são situados historicamente, por isso a necessidade de nos lembrar do sentido de pertença a uma dada comunidade.  Já com o amor-próprio Gadamer está tentando nos dizer que apenas a experiência da alteridade em que o nosso eu se abre para o outro e se reconcilia consigo mesmo é possibilitador da fundação de laços profundos de amizade, amor e solidariedade. Com o estar-em-casa estamos situados, com o amor-próprio sabemos como desenvolvemos os laços. Agora, com a experiência de viver-em-conjunto no mesmo estar-em-casa nós podemos deixar acontecer o amor-próprio. Com o viver-em-conjunto é possível desenvolver o amor-próprio no sentido dado por Gadamer.
            Eis então que voltamos à pergunta sobre o que é a verdadeira amizade. Ao viver em conjunto nós partilhamos significados, nós construímos amizades. Mas, o que funda essas amizades no seu sentido mais primordial, não é a partilha de bens comuns ou laços comuns, ou traços e identidades comuns[6]. Não é a unidade do self constituída por meio da reunião de vários selfs porque eles compartilham e identificam uns nos outros as mesmas coisas. Antes, a reconciliação consigo mesmo que o amor-próprio traz só é possível na experiência da alteridade, na experiência com o outro. Gadamer nos diz que a verdadeira amizade deve existir em primeiro lugar e acima de tudo consigo mesmo. O que é existir para consigo mesmo? Significa que a amizade verdadeira exige que o amor-próprio possa se desenvolver e para que o amor-próprio possa se desenvolver a experiência do outro é primordial. Isso é necessário para que possamos ter verdadeiros laços para com os outros e com os outros.
            A reconciliação consigo mesmo é possível por meio da experiência da alteridade, por isso o Outro é fundamental para que laços genuínos de amizade possam ser criados. Os laços, vínculos ou ligações (Verbunden) com o Outro ou para com o Outro criam o sentido de obrigatório (Verbindliches). A experiência da alteridade é tão importante que Gadamer usa o exemplo da resistência dos gregos aos persas como uma guerra em prol da mantença dessa experiência de individualidade-alteridade contra um império que ameaçava suprimir como de forma niveladora as experiências de liberdade e modos de vida dos gregos[7]. Nesse exemplo vemos que o dialogo desenvolvido por Gadamer conosco mostra claramente que a estar-em-casa, amor-próprio e viver-em-conjunto são experiências hermenêuticas ao mesmo tempo situadas historicamente e, justamente por isso, universais, porque entanto experiências ocorrem para todos os seres que são necessariamente históricos. A violência e o domínio estão justamente na impossibilidade de se desenvolver esses elementos da vida concreta do ser que é situado na história e no mundo.       
            A verdadeira amizade é desenvolvida quando se está-com-outro. Ela permite que possamos nos conhecer a nós mesmos nos outros e que os outros se reconheçam eles mesmos em nós. A amizade é a virtude capaz de canalizar esse desenvolvimento hermenêutico da reconciliação do ser consigo mesmo no outro.  Por ser um desenvolvimento da experiência hermenêutica, a amizade não é possuída como um bem. Não se tem uma amizade. Ela não é disponível enquanto regra da tekne. A amizade tem de ser compreendida à luz do primado da ética tal como argumentamos na primeira parte desse trabalho. A verdadeira amizade é situada na práxis, na atuação da ação dos sujeitos que procuraram se reconciliar com a sua tradição e com os outros. Por isso Gadamer retoma o sentido dado por Aristóteles de amizade: Arete. A verdadeira amizade é best-ness, algo que não pode ser ampliada mais do que ela é, isso porque ela é dada na experiência hermenêutica dos indivíduos situados historicamente.
            Gadamer nos diz que significado profundo da amizade, que também é autoconhecimento, é que nunca se reconhece os preconceitos de seu próprio amor-próprio, mesmo quando se acredita ser um amigo correto do Outro. Por isso ele indaga sobre o que é ser verdadeiramente um amigo? Como compreender isso, uma vez a unidade consigo mesmo é também uma pré-condição para ser um amigo que é correto com o outro? No nosso entendimento essa é uma experiência histórica e prática.  A conciliação consigo mesmo é sempre um estar-com-outros que por sua vez estão-conosco, mas, tanto nós mesmos, quanto os outros, estamos em constante mudança da compreensão recíproca de nossos seres. Por isso é uma ilusão pensar que a conciliação consigo mesmo no outro é algo acabado ou dado uma única vez no tempo e no espaço da concretude histórica.
No plano da práxis, eu só posso me conciliar comigo mesmo e ser uma bom amigo ao mesmo tempo, pois minha ação está ligada ao fim que é estar com os Outros de tal forma que eu possa estar comigo mesmo. Gadamer nos fala então que a condição da conciliação e da correção de ser um amigo autêntico não tem como abrir mão da estrutura intersubjetiva da amizade. Por isso a amizade não é um bem que pode ser possuído. A estrutura da amizade é um estar-com-outros que pode ser identificado na variabilidade de fenômenos que conhecemos como amizade em nossas interações cotidianas. Com a ajuda da analogia desenvolvida pelos gregos, Gadamer passa a comparar as várias manifestações da amizade exemplificadas por ele mesmo ao longo de sua fala. Parece que seu intuito é mostrar como nas várias manifestações de amizade, mesmo aquela que não são autênticas no sentido mais rigoroso, estão presentes os elementos da estrutura fundamental de estar-com-outros.  
Antes de passar ao ultimo ponto de nosso trabalho, a solidariedade, gostaríamos apenas de propor aqui uma certa consideração que pretendemos investigar mais aprofundadamente. Na primeira parte do nosso trabalho destacamos como a ética é importante para Gadamer no sentido de possibilitar e experiência hermenêutica num nível mais fundamental. Por isso a compreensão de que o problema hermenêutico da conciliação com a tradição é antes de tudo um problema que tem de ser investigado a partir da aplicação. Em seguida foi retomado como o problema hermenêutico se desenvolve na experiência hermenêutica do tu, na qual Gadamer vê pelo menos três formas de manifestação. Nesse ponto podemos fazer nossa observação: cada uma das três etapas de experiência do tu, assim como sua compreensão análoga para a compreensão do problema hermenêutico, são, ceteris paribus, análogas a compreensão de Gadamer sobre a amizade.
(a)   A amizade autentica não pode ser fundada em traços comuns de identidade, compartilhados por conta de sua manifestação recorrente entre os indivíduos, porque ela só pode revelar aquele primeiro momento da experiência do tu que se baseia no conhecimento da regularidade das ações humanas como fator determinante da compreensão das relações humanas. Aqui a amizade se torna um objeto, perde o seu valor e passa a ser reificada tal qual se faz com a tradição quando se pretende pensá-la apenas do mesmo modo que as ciências naturais.

(b)  A amizade autentica não pode ser fundada unicamente no sentido de pertença a uma dada comunidade histórica concreta. A pertença a uma determinada terra-natal do qual nós desde já estamos inseridos e familiarizados sem a possibilidade de reconciliação de nós mesmos com nos outros, pela experiência da alteridade, nos torna de certa forma apenas influenciados pelos valores que são compartilhados pela comunidade sem que necessariamente haja uma abertura de nós mesmos. Essa forma de amizade, em que se opera um nivelamento, se dá quando o sentido de individualização se dissipa no macro-sujeito comunidade. No encontramos desde sempre em um at home, mas não podemos nos desligar do sentido de abertura proporcionado pelo amor-próprio e pelo viver-com-outros. Esse desenvolvimento não autentico da amizade se dá no mesmo sentido do nivelamento da tradição da consciência histórica que se apropria do passado esquecendo ela mesma de sua condição limitada, assim como das experiências de reconhecimento que perdem a imediaticidade da compreensão do outro por meio da hiper-reflexão que empreendem.

(c)   A amizade autentica só é possível quando são conciliadas as condições da terra-natal (situação histórica determinada), amor-próprio (reconciliar-se consigo mesmo no outro) e estar-com-outros (experiência que possibilita a reconciliação de si mesmo no outro).  Esse é a mesma modalidade de experiência com o tu que Gadamer desenvolve como a verdadeira experiência hermenêutica. A amizade autentica é no plano da ética a realização da consciência histórica efeitual que se dá na experiência do tu e da conciliação com a tradição. A amizade autentica é no plano da práxis uma abertura ao outro em que reconheço que devo estar disposto a deixar valer em mim algo contra mim, ainda que não haja nenhum outro que vá fazer valer contra mim. Esse é o sentido da conciliação consigo mesmo no outro. É poder permitir que meu ser possa coexistir com o ser dos outros porque eu pude entender como o ser dos outros o é e como eu posso vir a ser com eles.    
           



[1] GADAMER, H. G. La diversidade de las lenguas y la compreensión del mundo. IN Arte y verdade de la palabra. Traducción de José Francisco Zúñiga García.  Paidós: Barcelona, 1993, p. 111-112.
[2] GADAMER, H. G.  Friendship and Solidarity. Research in Phenemonology, Leiden, vol. 39, issue 1, 2009, p. 3-12.
[3] Id., ibidem.
[4] GADAMER, H. G. Friendship and Solidarity. Research in Phenemonology, Leiden, vol. 39, issue 1, 2009, p. 3-12.
[5] Id., ibidem.
[6] Nesse sentido, o pensamento de Gadamer sobre a amizade difere do de Richard Rorty para quem são os traços de semelhança e identificação que permitem a experiência conjunta entre os indivíduos que se unem contra as experiências de humilhação e degradação humana, expandindo os seus laços de solidariedade de pequenas às grandes comunidades.
[7] GADAMER, H. G.  Friendship and Solidarity. Research in Phenemonology, Leiden, vol. 39, issue 1, 2009, p. 3-12.

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