Parte (2)
Em 1990 Gadamer chamou a atenção
para o fato de que os conflitos armados entre os povos ainda era, e é, algo
preocupante. Diante da multiplicidade de povos que querem se afirmar
belicamente uns aos outros, Gadamer expressou uma preocupação com uma
catástrofe de proporções globais. A técnica e o progresso científico só
tornaram ainda mais devastadoras as possibilidades de um conflito armado entre
partes que querem se afirmar umas perante as outras hierarquicamente. Como um
intelectual e filósofo sério ele se perguntou sobre como é possível salvar a
humanidade de si mesma e desenvolver um espírito comunitário, a solidariedade
necessária para a vontade de viver e sobreviver[1].
Nessa parte queremos demonstrar como a amizade pode responder num primeiro
nível a esse desafio de possibilitar a compreensão entre os indivíduos e suas
comunidades.
Gadamer inicia sua compreensão da
amizade demonstrando que hoje ela se tornou um termo que muitas vezes pretende
cobrir uma vasta gama de fenômenos. Na nossa tradição cultural a amizade é um
tema que vem desde os gregos. Mas o que
é a verdadeira amizade? E o que significa ser amigo num mundo de instituições
compartilhadas e mercados, num mundo de diversidade de conflitos e
entendimentos que tornam a ação comunitária possível? Ironicamente Gadamer
agradece ao modo como nossa sociedade está anonimamente organizada para nos
desafiar uma pergunta instigante: quem é o vizinho ao lado com quem vivemos?
Será que perdemos o sentido de uma pertença a uma comunidade em que seja
importante conhecer o nome das pessoas, compartilhar hábitos, ter
tranquilidade?[2]
Para saber no que consiste a
verdadeira amizade Gadamer vai descrevendo uma série de fenômenos sob aos quais
as pessoas costumam atribuir amizade. Com a referência aos diálogos de
Sócrates, Gadamer aponta que seus interlocutores não podem conhecer mais do que
uma amizade infantil. A ilustração serve para demonstrar que não há uma relação
de reciprocidade, mas apenas uma competição pela atenção de Sócrates que,
aparentemente, se diverte com a disputa. A amizade então não pode ser fundada
no interesse, tampouco na disputa por atenção ou em relações assimétricas entre
os indivíduos[3]. Será
então que são os laços em comum determinados por aquilo que nós identificamos
no outro como sendo nosso o que constitui a amizade? A familiaridade dos traços
em comum, os mesmos gostos, histórias, traços em comum. Ao contrário do que se
poderia esperar, Gadamer expõe que são as diferenças, muito mais do que as
semelhanças, os elementos que aparentemente constituem a amizade.
A dificuldade em determinar o que é
a amizade percorre a história das ideias na filosofia. Todavia, para Gadamer, a
verdadeira amizade é algo escondido e não algo que se pode estar tão perto. A
amizade não pode ser determinada pelo que é igualmente encontrado nas pessoas
ou pela admiração recíproca pelas diferenças uns dos outros. Com diversos
exemplos que ilustra a discussão, como as crianças em torno de Sócrates ou o
diálogo deste com Alcebíades, Gadamer quer demonstrar que a amizade não é
um conceito abstrato que pode ser dividido em várias subespécies. Tampouco
a verdadeira amizade pode ser fruto dos desejos, felicidades, prazeres,
vantagens, negócios, etc. A verdadeira amizade não é um fruto da identidade
entre os indivíduos, tampouco de um cálculo racional de um agente prudente. Gadamer
nos lembra que o sentido originário da palavra Oikeion, hoje base para a palavra economia, era o termo usado por
Sócrates para designar uma forma mais autêntica de socialização entre os indivíduos
“the house-like/domestic” ou “the home-like/native”. O que nos é familiar? Isso
é o constitutivo da amizade que Gadamer busca[4].
Gadamer nos convida a perguntar o
que hoje poderia ser considerado como nosso Oikeion?
O estar-em-casa (at-home) do qual não se pode falar, mas podemos perceber quando
falamos de nossa casa ou da nossa terra natal. A verdadeira amizade parte como
primeiro pressuposto desse sentido de familiaridade que é tão profundo: pensar
numa pertença não problematizada a uma tradição, uma pertença de não
estranhamento de uma total integridade com a comunidade. A terra-natal é algo imemorial, apesar de não sabermos o que é que
pode estabelecer tais vínculos tão profundos entre as pessoas, mas a pertença a
uma terra natal e origem comuns representa uma conexão que Gadamer considera
como um tipo de comunidade, uma modalidade de solidariedade que não requer que
eu declare ser solidário, pois ela já é solidária em si e para si mesma. Mas
qual é o segredo ainda não revelado dessa conexão autentica e primordial? Até
aqui, pelo menos, foi possível acompanhar Gadamer no sentido de que uma amizade
autentica e uma solidariedade autentica partem desse primeiro sentido de
pertença a um locus específico no
tempo e no espaço, na concretude das relações mais primordiais que os
indivíduos podem desenvolver sem necessariamente terem de problematizar ou
exercer uma reflexão racional que sempre chega depois ou perde a imediatez da
compreensão hermenêutica.
Gadamer novamente retoma os gregos para
responder a pergunta acima. Existe uma palavra que é de fundamental importância
para a compreensão da amizade: Philautia,
“amor-próprio”. No amor-próprio nós
trazemos à tona a verdadeira condição para todos os possíveis laços com os
outros e o comprometimento para com nós mesmos. Aqui o amor-próprio não é a preservação egoística de nós mesmos, não é
apenas pensar em nós mesmos e não no que o outro é ou o que é para o outro. Não
é essa concepção reducionista de amor-próprio
que Gadamer está resgatando dos gregos. O que Gadamer quer trazer à nossa
consciência é o amor-próprio que é
autêntico porque ele nos reconcilia nos
tornando um com nós mesmos. Se nós pretendemos ser amigos, se nós
pretendemos poder amar ou desenvolver laços de solidariedade, é preciso trazer à tona o amor-próprio que nos permite ser um com nós mesmos[5].
Os laços profundos são desenvolvidos quando podemos nos conciliar em nossa
individualidade com o outro, a experiência da alteridade tem de necessariamente
fazer com que eu possa me abrir hermeneuticamente.
Com o estar-em-casa Gadamer, entendemos, quis demonstrar como os laços de
amizade são situados historicamente, por isso a necessidade de nos lembrar do
sentido de pertença a uma dada comunidade. Já com o amor-próprio
Gadamer está tentando nos dizer que apenas a experiência da alteridade em que o
nosso eu se abre para o outro e se reconcilia consigo mesmo é possibilitador da
fundação de laços profundos de amizade, amor e solidariedade. Com o estar-em-casa estamos situados, com o amor-próprio sabemos como desenvolvemos
os laços. Agora, com a experiência de viver-em-conjunto
no mesmo estar-em-casa nós podemos
deixar acontecer o amor-próprio. Com
o viver-em-conjunto é possível desenvolver
o amor-próprio no sentido dado por
Gadamer.
Eis então que voltamos à pergunta
sobre o que é a verdadeira amizade. Ao viver em conjunto nós partilhamos
significados, nós construímos amizades. Mas, o que funda essas amizades no seu
sentido mais primordial, não é a partilha de bens comuns ou laços comuns, ou
traços e identidades comuns[6].
Não é a unidade do self constituída
por meio da reunião de vários selfs
porque eles compartilham e identificam uns nos outros as mesmas coisas. Antes,
a reconciliação consigo mesmo que o amor-próprio
traz só é possível na experiência da alteridade, na experiência com o
outro. Gadamer nos diz que a verdadeira amizade deve existir em primeiro lugar
e acima de tudo consigo mesmo. O que é existir para consigo mesmo? Significa
que a amizade verdadeira exige que o amor-próprio
possa se desenvolver e para que o amor-próprio
possa se desenvolver a experiência do outro é primordial. Isso é necessário
para que possamos ter verdadeiros laços para com os outros e com os outros.
A reconciliação consigo mesmo é
possível por meio da experiência da alteridade, por isso o Outro é fundamental para que laços genuínos de amizade possam ser
criados. Os laços, vínculos ou ligações (Verbunden)
com o Outro ou para com o Outro criam o sentido de obrigatório (Verbindliches). A experiência da
alteridade é tão importante que Gadamer usa o exemplo da resistência dos gregos
aos persas como uma guerra em prol da mantença dessa experiência de
individualidade-alteridade contra um império que ameaçava suprimir como de
forma niveladora as experiências de liberdade e modos de vida dos gregos[7].
Nesse exemplo vemos que o dialogo desenvolvido por Gadamer conosco mostra
claramente que a estar-em-casa, amor-próprio e viver-em-conjunto são experiências hermenêuticas ao mesmo tempo
situadas historicamente e, justamente por isso, universais, porque entanto experiências
ocorrem para todos os seres que são necessariamente históricos. A violência e o
domínio estão justamente na impossibilidade de se desenvolver esses elementos
da vida concreta do ser que é situado na história e no mundo.
A verdadeira amizade é desenvolvida
quando se está-com-outro. Ela permite
que possamos nos conhecer a nós mesmos nos outros e que os outros se reconheçam
eles mesmos em nós. A amizade é a virtude capaz de canalizar esse desenvolvimento
hermenêutico da reconciliação do ser consigo mesmo no outro. Por ser um desenvolvimento da experiência hermenêutica,
a amizade não é possuída como um bem. Não se tem uma amizade. Ela não é
disponível enquanto regra da tekne. A
amizade tem de ser compreendida à luz do primado da ética tal como argumentamos
na primeira parte desse trabalho. A verdadeira amizade é situada na práxis, na atuação da ação dos sujeitos
que procuraram se reconciliar com a sua tradição e com os outros. Por isso
Gadamer retoma o sentido dado por Aristóteles de amizade: Arete. A verdadeira amizade é best-ness,
algo que não pode ser ampliada mais do que ela é, isso porque ela é dada na experiência
hermenêutica dos indivíduos situados historicamente.
Gadamer nos diz que significado
profundo da amizade, que também é autoconhecimento, é que nunca se reconhece os
preconceitos de seu próprio amor-próprio,
mesmo quando se acredita ser um amigo correto do Outro. Por isso ele indaga
sobre o que é ser verdadeiramente um amigo? Como compreender isso, uma vez a
unidade consigo mesmo é também uma pré-condição para ser um amigo que é correto
com o outro? No nosso entendimento essa é uma experiência histórica e prática. A conciliação consigo mesmo é sempre um estar-com-outros que por sua vez estão-conosco, mas, tanto nós mesmos,
quanto os outros, estamos em constante mudança da compreensão recíproca de nossos
seres. Por isso é uma ilusão pensar que a conciliação
consigo mesmo no outro é algo acabado ou dado uma única vez no tempo e no
espaço da concretude histórica.
No
plano da práxis, eu só posso me
conciliar comigo mesmo e ser uma bom amigo ao mesmo tempo, pois minha ação está
ligada ao fim que é estar com os Outros de tal forma que eu possa estar comigo
mesmo. Gadamer nos fala então que a condição da conciliação e da correção de
ser um amigo autêntico não tem como abrir mão da estrutura intersubjetiva da
amizade. Por isso a amizade não é um bem que pode ser possuído. A estrutura da
amizade é um estar-com-outros que
pode ser identificado na variabilidade de fenômenos que conhecemos como amizade
em nossas interações cotidianas. Com a ajuda da analogia desenvolvida pelos gregos, Gadamer passa a comparar as
várias manifestações da amizade exemplificadas por ele mesmo ao longo de sua
fala. Parece que seu intuito é mostrar como nas várias manifestações de
amizade, mesmo aquela que não são autênticas no sentido mais rigoroso, estão
presentes os elementos da estrutura fundamental de estar-com-outros.
Antes
de passar ao ultimo ponto de nosso trabalho, a solidariedade, gostaríamos apenas de propor aqui uma certa
consideração que pretendemos investigar mais aprofundadamente. Na primeira
parte do nosso trabalho destacamos como a ética é importante para Gadamer no
sentido de possibilitar e experiência hermenêutica num nível mais fundamental.
Por isso a compreensão de que o problema hermenêutico da conciliação com a
tradição é antes de tudo um problema que tem de ser investigado a partir da aplicação.
Em seguida foi retomado como o problema hermenêutico se desenvolve na
experiência hermenêutica do tu, na
qual Gadamer vê pelo menos três formas de manifestação. Nesse ponto podemos
fazer nossa observação: cada uma das três etapas de experiência do tu, assim como sua compreensão análoga
para a compreensão do problema hermenêutico, são, ceteris paribus, análogas
a compreensão de Gadamer sobre a amizade.
(a) A
amizade autentica não pode ser fundada em traços comuns de identidade,
compartilhados por conta de sua manifestação recorrente entre os indivíduos, porque
ela só pode revelar aquele primeiro momento da experiência do tu que se baseia no conhecimento da
regularidade das ações humanas como fator determinante da compreensão das
relações humanas. Aqui a amizade se torna um objeto, perde o seu valor e passa
a ser reificada tal qual se faz com a tradição quando se pretende pensá-la
apenas do mesmo modo que as ciências naturais.
(b) A
amizade autentica não pode ser fundada unicamente no sentido de pertença a uma
dada comunidade histórica concreta. A pertença a uma determinada terra-natal do qual nós desde já estamos
inseridos e familiarizados sem a possibilidade de reconciliação de nós mesmos
com nos outros, pela experiência da alteridade, nos torna de certa forma apenas
influenciados pelos valores que são compartilhados pela comunidade sem que
necessariamente haja uma abertura de nós mesmos. Essa forma de amizade, em que
se opera um nivelamento, se dá quando o sentido de individualização se dissipa
no macro-sujeito comunidade. No encontramos desde sempre em um at home, mas não podemos nos desligar do
sentido de abertura proporcionado pelo amor-próprio
e pelo viver-com-outros. Esse
desenvolvimento não autentico da amizade se dá no mesmo sentido do nivelamento
da tradição da consciência histórica que se apropria do passado esquecendo ela
mesma de sua condição limitada, assim como das experiências de reconhecimento
que perdem a imediaticidade da compreensão do outro por meio da hiper-reflexão
que empreendem.
(c) A
amizade autentica só é possível quando são conciliadas as condições da terra-natal (situação histórica
determinada), amor-próprio
(reconciliar-se consigo mesmo no outro) e estar-com-outros
(experiência que possibilita a reconciliação de si mesmo no outro). Esse é a mesma modalidade de experiência com
o tu que Gadamer desenvolve como a
verdadeira experiência hermenêutica. A amizade autentica é no plano da ética a
realização da consciência histórica efeitual
que se dá na experiência do tu e da
conciliação com a tradição. A amizade autentica é no plano da práxis uma abertura ao outro em que reconheço
que devo estar disposto a deixar valer em mim algo contra mim, ainda que não
haja nenhum outro que vá fazer valer contra mim. Esse é o sentido da
conciliação consigo mesmo no outro. É poder permitir que meu ser possa
coexistir com o ser dos outros porque eu pude entender como o ser dos outros o
é e como eu posso vir a ser com eles.
[1] GADAMER, H. G. La
diversidade de las lenguas y la compreensión del mundo. IN Arte y verdade de la palabra. Traducción de José Francisco Zúñiga
García. Paidós: Barcelona, 1993, p. 111-112.
[2] GADAMER, H. G. Friendship and Solidarity. Research in Phenemonology, Leiden, vol. 39, issue 1, 2009, p. 3-12.
[3] Id., ibidem.
[4] GADAMER, H. G. Friendship
and Solidarity. Research in
Phenemonology, Leiden, vol. 39,
issue 1, 2009, p. 3-12.
[5]
Id., ibidem.
[6] Nesse sentido, o pensamento
de Gadamer sobre a amizade difere do de Richard Rorty para quem são os traços
de semelhança e identificação que permitem a experiência conjunta entre os
indivíduos que se unem contra as experiências de humilhação e degradação
humana, expandindo os seus laços de solidariedade de pequenas às grandes
comunidades.
[7] GADAMER, H. G. Friendship and Solidarity. Research in Phenemonology, Leiden, vol. 39, issue 1, 2009, p. 3-12.
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