sábado, 20 de agosto de 2011

Série Teorias da Justiça e Relações Internacionais - John Rawls e O Direito dos Povos.



Qual é o Lugar da Soberania na Sociedade dos Povos?


A presente explicação vem em resposta ao amigo Prof. André Coelho e seus comentários feitos no post anterior. De nossas conversas surgem muitos esclarecimentos e suas intervenções são sempre uma maneira de aprender mais. Tentarei responder apenas à primeira parte de suas indagações. Relembrando-as, André Coelho perguntou (1) “quais seriam as razões normativas para Rawls não desconsiderar completamente a soberania dos Estados e criar uma ordem cosmopolita pós-nacional?” e (02) “considerar que a soberania seria um limite inultrapassável para qualquer projeto internacionalista?”.

Preliminarmente, vamos delimitar o sentido de soberania que estamos trabalhando aqui. A soberania a que o André Coelho se refere é aquela clássica que aprendemos nos manuais de Teoria Geral do Estado no Curso de Direito constituída pelo sentido de não submissão a qualquer poder para além do Estado. Esse é soberano porque no âmbito interno tem o monopólio da produção do direito, da coerção, do exercício da jurisdição, dentre outras competências.  Já no âmbito externo a Soberania é reconhecida principalmente pelo fato do Estado não estar subordinado a poder algum, a não ser que o faça voluntariamente.
Na história das relações internacionais o marco constitutivo desse conceito de soberania é a Paz de Westphalia estabelecida em 1648. No plano da história da filosofia política, o pensador que mais influenciou e ainda orienta as visões contemporâneas sobre a soberania no sentido acima é Thomas Hobbes.

Inicio a resposta pela pergunta (2). Em O Direito dos Povos Rawls não considera a soberania um limite inultrapassável. Antes, o seu exercício é relativizado e a estratégia teórica adotada por Rawls para torná-la porosa passa, ao meu ver, por dois momentos: (a) a escolha dos autores e destinatários do direito dos povos e (b) valorização da autodeterminação do povos.


(a) Os autores e destinatários dos princípios de O Direito dos Povos, segundo Rawls são os povos como ele estabelece de plano no §2. Por que povos e não Estados? Primeiro os povos, segundo Rawls, são pessoas morais dotadas dos atributos já conhecidos de sua filosofia política razoabilidade e racionalidade. Além disso, os povos possuíriam três características: governo constitucional razoavelmente justo, união em torno de afinidades comuns e natureza moral. Essas três características distanciam o projeto rawlsiano de qualquer proximidade com o entendimento clássico sobre soberania. 


Já na argumentação da primeira característica, Rawls afirma os governos não devem estar submetidos a imperativos sistemicos, funcionando de maneira autonoma e arredia aos interesses legítimos dos cidadãos. Um regime não pode furtar-se, arrazoa, a prestar contas aos cidadãos, tampouco a submeter-se aos interesses privados das grandes corporações e muito menos evitar a publicização de todos os seus atos. Aqui, nos parece, estão todos os elementos que já foram levantados por Kant em À paz perpétua e uma rejeição a muitas prescrições feitas por Hobbes em Do Cidadão.


O segundo aspecto das afinidades comuns não resprenta em Rawls a afirmação de que são os elementos pré-políticos que devem determinar a formação da união política dos cidadãos. Rawls reconhece a importância dos elementos pré-políticos como história, língua e orígem como compartilhadas, mas, também, retoma o fato do pluralismo por meio da constatação de hoje temos de elaborar princípios políticos comuns capazes de regular a cooperação dos povos das mais diversas origens. Podemos inferir, nesse ponto, que Rawls afasta-se claramente de uma visão clássica de soberania que fosse fundada num sentido de autoafirmação existencial de um povo, compreendido em sentido pré-político a Carl Schmmidt. 


Por último, a natureza moral dos povos faz com estes tenham os atributos da racionalidade e razoabilidade. A racionalidade que em Rawls é capacidade de avaliar os melhores meios e instrumentos para o alcance de um objetivo também é uma das característica dos povos. Essa poderia ser confundida com as razões de Estado, típicas da soberania clássica, se não fosse limitada pela razoabilidade. Rawls é bastante direto ao afirmar que a razoabilidade limita a racionalidade dos povos, apontando para a determinação da disposição em estabelecer termos de cooperação justos e equitativos entre os povos. 


Assim, os povos, por meio de suas características acima, não estariam submetidos ou propensos a formular um conceito de soberania que recaisse na visão clássica estabelecida em Westphalia. Mas não é apenas por meio de tais características que a soberania clássica é afastada por Rawls. Também o procedimento estabelecido pela segunda posição original, da qual são extraídos os princípios que devem reger o direito dos povos submete a ação dos Estados, uma vez que sua legitimidade está sujeita à conformidade com tais princípios. Dessa feita, os direitos tradicionais à guerra e a autonomia interna irrestrita são limitados pela formação de princípios elaborados pelos povos.


(b) Rawls não abandona a autodeterminação dos povos. Apenas tal autodeterminação ganha um sentido diferente daquele classicamente determinação pela idéia de não interferência abosoluta nos assuntos internos de um Estado e na limitação das pretensões internacionais de um Estado. A autodeterminação está restringida pelos limites razoáveis estabelecidos nos oito principios de justiça estabelecidos para o direito dos povos. Ela não tem um sentido pré-político, de afirmação de uma cultura ou tradição que não é capaz de adequar à exigências da justiça. A autodeterminação positivamente está ligado ao direito que todos os povos têm de preservar suas  instituições, liberdades, aspectos sociais e econômicos, ajustando sua estrutura básica fazendo justiça aos seus cidadãos. 


Agora a autodeteminçãoautodeterminação dos povos torna-se a autodeterminação política tomada a partir das três características dos povos acima tratadas e sujeita aos princípios do direito dos povos.


(1) De posse dos elementos acima, a primeira pergunta pode ser respondida da seguinte maneira: em O Direito dos Povos não estamos diante de considerar ou desconsiderar a soberania, ou "não desconsiderar completamente" a mesma. Rawls quer apenas limitar seu sentido clássico por conta de seu entendimento acerca da razoabilidade e de como essa é capaz de impor limites à racionalidade dos Estados encarnada nas clássicas razões de Estado. Os motivos normativos para impor tais limites estão na visão de que tais imposições constituem as condições de partida para uma sociedade dos povos cooperativa e justa. 

Se a sobernia é exercida fora dos limites do direito dos povos então ela deve ser refutada, pois ela impede a convivência justa entre os povos. Na outra ponta, se ela é exercida em conformidade com os princípios do direito dos povos então ela tem legitimidade. Eis então que a idéia de que é impossível restringir o poder soberano dos Estados na arena internacional é contraposta pela ideal de um direito internacional capaz de estabelecer os limites da ação legítima do Estado.


Ao final, entendo que Rawls não quer uma ordem pós-nacional. Das minhas leituras, até o presente momento, o vejo de maneira bastante dualista. O Estado nacional tem seu lugar bem resguardado em o Direito dos Povos. Já a soberania tem um lugar menor do que o Direito. A juridificação das relações torna-se o domestificador do poder que não passa mais ser exercido ilimitadamente, tanto que a sociedade dos povos é autorizada a agir em prol da proteção dos direitos humanos e da proscrição das guerras de agressão.

Nenhum comentário:

Postar um comentário