sábado, 23 de julho de 2011

Série Teorias da Justiça e Relações Internacionais - John Rawls e O Direito dos Povos


John Rawls e O Direito dos Povos

1. Aspectos preliminares.




A influência de John Rawls na filosofia contemporânea é incontroversa. Suas duas grandes obras Uma teoria da justiça e Liberalismo Político marcam profundamente o estágio atual da filosofia política contemporânea. Também na filosofia política das relações internacionais Rawls deixou um legado teórico com a obra O Direito dos Povos
Na biografia de Rawls, suas primeiras incursões sobre a política internacional ocorreram num curso de verão lecionado em Harvard em 1969, cujo título foi “Problems of War” [1]. Desde então, como o próprio Rawls relata no prefácio de O Direito dos Povos[2] - LOP, o filósofo retomou no fim da década de 1980 a mesma temática do que ele chamou inicialmente de “O Direito dos Povos”. Em 12 de fevereiro de 1993 ele proferiu uma conferência (Oxford Amnesty Lecture) também intitulada “O Direito dos Povos” que foi publicada na obra On Human Rights: The Oxford Amnesty Lecture de 1993. A última versão foi elaborada por Rawls entre 1997-98, constituindo-se uma revisão de três seminários que Rawls fez em Princeton em abril de 1995[3].

LoP é uma obra de Rawls que vai ao encontro dos seguintes problemas: o estabelecimento de uma nova ordem mundial no pós-guerra, estudo das condições sob as quais os conflitos podem ser considerados justos, o papel dos direitos humanos, a investigação acerca de justiça distributiva em âmbito global, etc[4]. 

Em LoP Rawls reconhece a importância dos elementos tradicionais das relações internacionais como a personalidade jurídica dos Estados, respeito a integridade territorial, autonomia e independência na sua atuação de suas políticas externas. 
Porém, Rawls contribui contemporaneamente às teorias das relações internacionais abordando conceitualmente o tema das restrições ao uso da soberania clássica. Dentre as idéias teóricas mais importantes elaboras em LOP estão: (a) proibição de entrar em guerra, exceto nos casos de autodefesa, (b) o respeito aos direitos humanos e (c) o dever de promover a economia e o desenvolvimento das “sociedades oneradas” [5].

São os pontos (a) e (b) levantados por Rawls que mais interessam para a futura pesquisa sobre Intervenções Humanitárias e Direitos Humanos. Porém, antes de avançar sobre eles, é preciso explicar o método construtivista de Rawls no âmbito da filosofia política e sua aplicação às relações internacionais. 

O sentido que Rawls atribui do que seja uma concepção construtivista de justiça é fundamentado na idéia de que tal concepção:

"representa os princípios da justiça, não como parte de alguma ordem atemporal e estabelecida independentemente na mente, cogniscivel através de uma razão teórica, mas, sim como "o resultado de um processo de construção "enraizado em um raciocínio prático e não teórico"[6].

Rawls está preocupado em LoP em expandir os limites da possibilidade prática da política[7]. Nesse sentido, propõe um procedimento que reconheça os problemas da realidade social apresentando soluções que se harmonizem com as nossas exigências ideais expressas na liberdade, autonomia, cooperação social justa e estruturas bem-ordenadas[8]. Sob as condições sociais e com o olhar nesses ideais normativos, o objetivo de LoP é dizer como uma Sociedade de Povos seria possível.

Por isso, em LoP Rawls explica que o intuito da sua monografia é estender a possibilidade de uma utopia realista tanto às sociedades liberais quanto aos demais povos que atenderem as exigências da justiça.


O sentido da idéia de utopia realista no pensamento filosófico de Rawls expressa bem como será aplicado o seu construtivismo em LoP. Quais seriam as exigências morais postas nos limites das condições sociais e políticas? Qual é o conteúdo dessas condições que Rawls trata?

O conceito de utopia realista proposto por Rawls trabalha sob a tensão que se desenvolve a partir das exigências morais e da realidade social. A explicação do que Rawls considera como utópico, bem como realista é encontrado nos primeiros parágrafos da Teoria Ideal desenvolvida em LoP.

O sentido utópico não reside em algo irrealizável, mas na tentativa de propor a possibilidade de uma sociedade justa, seja no âmbito interno, seja no âmbito externo, por meio de leis e instituições
[9]. Já o sentido do realístico está em conciliar essas exigências com a condição social em que se encontram as sociedades contemporâneas.

Para Rawls são as presentes condições históricas, cujo traço mais marcante é o pluralismo[10] no âmbito interno e o diversidade entre povos que, no âmbito externo, expressam diferentes culturas e tradições de pensamento, sejam elas religiosas ou não, diversidade de regimes constitucionais ou não, etc[11].

Rawls entende as condições acima como inquestionáveis. A tarefa de seu construtivismo é tornar tais condições justas. É avançar do pluralismo para o pluralismo razoável, da diversidade de povos para a diversidade de povos razoáveis. Rawls quer introduzir os elementos morais capazes de tornar a convivência diversa justa.


Em seus termos, tal convivência seria razoável porque não exigiria nada além do que uma maior justiça política e liberdades para os seus membros sob as condições sociais postas. Assim, propõe uma concepção de justiça que consiga conjugar a diversidade de cosmovisões abrangentes de mundo, as aceitando, tolerando e tornando a sua convivência pacífica e duradoura.


E
m tais condições a Sociedade dos Povos se posiciona diante da diversidade de povos tendo de manter a viabilidade de seu projeto ao mesmo tempo em que sustenta as noções de justiça. A Sociedade dos Povos deve também compreender os povos[13] e sua condição social plural, propondo princípios, instituições e leis que consigam alcançar a estabilidade pelas razões certas.

Eis que é preciso então formatar uma estrutura básica cujo conteúdo seja legítimo por atender os critérios de justificação pública que os povos possam atribuir e exercer entre si. Quanto ao lado realista, a Sociedade dos Povos há de ser funcional e aplicável às relações políticas cooperativas[14].

Além disso, ela deve atender às necessidades do plano político conjugada com o desenvolvimento do senso de justiça de seus membros. Uma das condições fundamentais se dá com a exigência de que os povos apóiem governos que honrem o Direito dos Povos, uma vez que para Rawls a lealdade ao Direito dos Povos não precisa ser igualmente forte em todos os povos, mas, idealmente falando, dever ser suficiente
[15]. Por último, a unidade dos povos é mantida pelo conteúdo de uma razão pública entre os povos apoiada pela tolerância entre a diversidade de concepções de justiça existentes entre os povos[16].

Dadas tais condições, Rawls utiliza a posição original como modelo de representação aplicando-a em LoP três vezes: (a) na primeira parte da teoria ideal: a.1- no âmbito interno das sociedades liberais como já havia feito antes em Liberalismo político; a.2 – no âmbito externo, primeiro entre os povos democráticos e liberais
[17]; (b) na segunda parte da teoria ideal, no âmbito externo, quando estende a Sociedade dos Povos aos povos hierarquicamente decentes. Após essas três etapas, surgem os seguintes princípios[18]:

1. Os povos são livres e independentes, e a sua liberdade e independência devem ser respeitadas por outros povos.

 

2.Os povos devem observar tratados e compromissos.

3.Os povos são iguais e são partes em acordos que os obrigam.

4.Os povos sujeitam-se ao dever de não intervenção.

5.Os povos têm direito de autodefesa, mas nenhum direito de instigar a guerra por outras razões que não a autodefesa.
 

6.Os povos devem honrar os direitos humanos.

7.Os povos devem observar certas restrições específicas na conduta da guerra.

8.Os povos têm o dever de assistir a outros povos vivendo sob condições desfavoráveis que os impeçam de ter um regime político e social justo ou decente.




[1] MARTIN, Rex; REIDY, David. Introduction: Reading Rawls’s The Law of Peoples. IN: MARTIN, Rex; REIDY, David. Rawls’s Law of Peoples: a Realistic Utopia? Blackwell Publishing, 2007, p. 05.
[2] LoP, p. XVII.
[3] LoP, p. XVII-XVIII.
[4] MARTIN, Rex; REIDY, David. Introduction: Reading Rawls’s The Law of Peoples. IN: MARTIN, Rex; REIDY, David. Rawls’s Law of Peples: a Realistic Utopia? Blackwell Publishing, 2007, p. 06.
[5] Op. Cit. p. 06.
[6] Do original: “represents the principles of justice not as part of some timeless and mind-independent moral order known trough theoretical reason, but rather as ‘the outcome of a procedure of a construction” rooted in a practical rather theoretical reasoning”. MARTIN, Rex; REIDY, David. Introduction: Reading Rawls’s The Law of Peoples. IN: MARTIN, Rex; REIDY, David. Rawls’s Law of Peples: a Realistic Utopia? Blackwell Publishing, 2007, p. 11.
[7] LoP, p. 06.
[8] MARTIN, Rex; REIDY, David. Introduction: Reading Rawls’s The Law of Peoples. IN: MARTIN, Rex; REIDY, David. Rawls’s Law of Peples: a Realistic Utopia? Blackwell Publishing, 2007, p. 11.
[9] LoP, p. 15.
[10] O conceito de pluralismo razoável como o próprio Rawls faz referência é desenvolvido em Liberalismo Político.
[11] LoP, p. 15-16.
[12] LoP, p. 17 a 22. São elas: (a) as realistas – a. 1 reconhecimento da realidade social e propositura de leis e instituições capazes de corrigir essa realidade; a.2 – princípios e preceitos funcionais e aplicáveis ao arranjo social existente; (b) – as utópicas: b.1 - utilização de idéias, princípios e conceitos morais para especificar uma sociedade como justa;  b.2 – satisfação dos critérios de reciprocidade, todas as leis devem ser aprovadas por cidadãos livres e iguais; b.3 – categoria do político contendo os elementos de justiça; b.4 –  concepção política razoável de direito firmada sobre o consenso sobreposto de doutrinas abrangentes; b.5 – uma idéia razoável de tolerância. 
[13] Rawls utiliza povos ao invés de Estados, pois para ele os povos têm natureza moral. No caso dos povos liberais essa natureza moral se manifesta na razoabilidade e racionalidade (LoP, p. 33). Já no caso de alguns povos hierárquicos, existe a possibilidade de possuírem uma natureza moral menos exigente que é a decência (LoP, p. 82-92). Além disso, uma importante distinção que Rawls faz está em sua consideração de que os povos não padecem dos vícios da soberania clássica como o Estados que, de posse da noção estabelecida na Guerra dos Trinta Anos, sempre padeceram ao buscar seus interesses particularistas (LoP, p. 33-38). 
[14] LoP, p. 23.
[15] LoP, p. 24.
[16] LoP, p. 24-25.
[17]Num momento posterior, após a avaliação do tema e da relevância dele, posso melhorar esse ponto, uma vez que pretendo ampliar a investigação sobre Rawls. Pelo menos aqui, tenho de simplificar.
[18] LoP, p. 47-48.

2 comentários:

  1. Bom ver que você voltou a postar no blog. Achei muito interessante a postagem no sentido de expor a posição de Rawls, mas vou formular abaixo algumas questões para as quais aguardo as suas respostas.

    Quais seriam, em Rawls, os motivos normativos para:

    a1) não desconsiderar completamente a soberania dos Estados e criar uma ordem cosmopolita pós-nacional? ou então

    a2) considerar que a soberania é um limite absoluto e inultrapassável para qualquer projeto internacionalista?

    b1) não exigir no âmbito internacional a mesma lista abrangente de direitos básicos para o âmbito nacional? ou então

    b2) não exigir no âmbito nacional, sob a égide da TJ, apenas a mesma lista magra de direitos básicos que podem ser exigidos no âmbito internacional?

    ResponderExcluir
  2. Obrigado André. Sabes que me inspiro em você e em nosso grupo de estudos. Esse post foi apenas uma apresentação. Pretendo trabalhar o texto com as tuas perguntas e outros esclarecimentos sobre os conceitos utilizados por Rawls. Aguerdemos os próximos posts. Abraços.

    ResponderExcluir