terça-feira, 12 de junho de 2012


Quais as possibilidades da paz? Notas sobre a aproximação e distanciamento da releitura de Habermas da Paz Perpétua.
Comunicação do IV Encontro  CIK  UFSC - 2012
Davi José de Souza da Silva
Doutorando UFSC/Capes


          Em 1796 Kant levou o idealismo transcendental para a filosofia política dando um passo que até então não fora pensando de maneira tão concisa e consequente: com o opúsculo Zum Ewigen FriedenÀ paz perpétua (1796) Kant argumentou que o estado civil, onde imperam as leis capazes de administrar universalmente o arbítrio, só poderiam cumprir a promessa da pacificação se ultrapasse a esfera dos Estados nacionais e se consolidasse em âmbito global numa Aliança Federativa de povos livres e iguais capazes solucionar seus conflitos por meio do direito e implementar o direito cosmopolita. Nas relações internacionais, o escrito kantiano deixou marcas profundas que vão desde a contraposição ao realismo de Estado até a influência direta na construção de instituições internacionais como a Liga das Nações e sua substituta a Organização das Nações Unidas, Organização Mundial do Comércio e demais instituições. Na filosofia política contemporânea, Kant com seu pequeno tratado tornou-se referência e influência para aqueles que querem propor uma teoria da justiça em termos globais. John Rawls com O direito dos povos, Ottifried Höffe com A Democracia no Mundo de Hoje, Seyla Benhabib com Another Cosmpolitanism, Danielle Archibuggi com Democracia Cosmopolita, dentre outros resgatam motivos, conceitos e argumentos kantianos quando propõem suas teorias. Dentre eles o teórico do discurso Jürgen Habermas também se move sob o horizonte kantiano da paz perpétua quando propõe a formação da (1) sociedade mundial sem governo mundial, (2) a constitucionalização das relações internacionais e um (3) universalismo igualitário inclusivo e sensível às diferenças. Em que medida essas proposições filosóficas de Habermas se aproximam e se distanciam da égide kantiana é o tema da minha comunicação.
(1)        Kant com os três artigos definitivos da paz perpétua estabeleceu o eixo conceitual normativo pelo qual é possível a paz como um mandamento da razão prática. “A constituição em cada Estado deve ser republicana (1º Artigo definitivo)”, “O direito das gentes deve fundar-se numa federação de Estados livres (2ª Artigo definitivo)”, “O direito cosmopolita deve limitar-se às condições da hospitalidade universal (3ª Artigo Definitivo)”.  A constituição republicana fundada sobre os princípios da liberdade, da legalidade e da igualdade conserva em sua origem constitutiva a possibilidade de que os cidadãos possam deliberar sobre as decisões do Estado, os cidadãos quando ouvidos sobre a possibilidade da guerra tem a chance de dizer um não diante dos horrores que podem trazer sobre si. No âmbito das relações entre os Estados, Kant propõe a saída do estado de concorrência anárquica e adoção de leis públicas coativas no seio de uma federação pacífica que não seria meramente temporária e procuraria por fim a todas as guerras. Tal Aliança Federativa espantaria a ideia de um despotismo uniformizante e permitiria a pluralidade de povos. Kant vê no sucedâneo negativo de uma federação contrária a guerra a possibilidade real de levar a cabo as exigências da razão nas relações internacionais. À luz de sua época, tal federação permitira ser possível pensar na paz. Por último, o direito cosmopolita garantiria o livre trânsito dos indivíduos permitindo que os mesmos fossem tratados igualmente em todos os lugares do globo, uma constituição fundada segundo o direito cosmopolita (Weltbürgerrecht) consideraria os homens e os Estados na sua influência recíproca como cidadãos de um estado universal da humanidade (jus cosmopoliticum). A sociedade mundial sem governo mundial de Habermas também guarda um paralelo com esse projeto. Aliás, se desenvolve conceitualmente na mesma direção. Em primeiro plano ela é dependente do Estado democrático de direito. O kantiano ortodoxo logo faria a observação sarcedotal: “mas para Kant a republica não é o mesmo que a democracia!”. Mas há de se perguntar se todos os elementos que Kant diz ter uma constituição republicana hoje não encontra acolhimento nas constituições democráticas. No plano intermédio, também para Habermas não há um Estado mundial. Não há República Mundial. Isso porque também à luz da constelação política contemporânea, não é necessário que haja a ligação direta do ponto de vista conceitual entre republicanismo e Estado, entre constituição e Estado. O exemplo do federalismo norte-americano e a possibilidade de articulação de instituições públicas globais, regionais e nacionais aponta para desnecessidade e não desejabilidade de uma república mundial. E se antes Kant tinha medo de uma uniformização dos povos e o temor da perda da pluralidade destes, hoje um Estado mundial também padece da suspeita da ressurreição de um imperalismo de matizes “liberais” a mando da globalização econômica. Por último, os direitos humanos a nível global exercerm um papel fundamental no projeto cosmopolita de Habermas. Eles são o lugar atualizado do jus cosmpoliticum de Kant, preservam que os indivíduos sejam tratados como iguais em todas as partes do globo e colocam eles como cidadãos do mundo na constituição mundial, demonstrando que os Estados já não gozam de uma soberania irrestrita e concretizando a nota de Kant sobre o direito cosmpolita, pois na arena mundial, os cidadãos passam a exercer influência sobre os Estados e vice-versa. Ambos são considerados na constituição global.
(2)        Se o desenvolvimento dos conceitos segue o mesmo vetor entre os dois autores é porque ambos veem que a superação de muitos problemas da humanidade passa pela constitucionalização das relações internacionais. Ambos os filósofos, Kant e Habermas, apostam no processo de juridificação como saída do estado de natureza para o estado civil. Em Kant por meio do direito é possível a superação do estado anárquico e a entrada no estado civil, onde a liberdade de cada um possa ser e estar em conformidade com o mandamento da razão. Por sua vez, Habermas não confia tanto num direito natural de bases metafísicas que é capaz de apontar os limites de uma legislação positiva. Antes, Habermas vê no direito positivo moderno um código capaz de tanto preservar a estabilidade de comportamentos quanto as pretensões de legitimidade. Se Kant fala num direito anterior a positividade, Habermas fala do direito positivo que pode pretender a legitimidade quando este resolve ser o medium pelo qual as deliberações advindas da esfera pública possa fazer-se valer. Embora hajam tais diferenças, ambos apostam que o direito, ditado pela razão prática ou mundanizado no direito positivo constituem o meio adequado para a superação dos problemas da humanidade. Ambos entendem que a saída para os problemas de suas épocas está na organização social e política por meio do elemento jurídico. Entretanto, podemos indicar que há algumas diferenças notáveis nos dois projetos quanto a esse ponto. Kant propôs uma constitucionalização fraca do direito internacional, pois ele deixou, em ultima instância preservado o núcleo decisionista dos Estados membros da aliança federativa quando deixou para eles o ato de aceitar as leis públicas coativas da federação. Diante disso, sempre fica em aberto a possibilidade de rompimento desta. Por sua vez Habermas defende um constitucionalismo global mais forte, pois apenas sob a égide de uma constituição que faz concreto o elemento da coercibilidade do direito positivo é que se pode atacar a soberania clássica dos Estados nacionais causadora de tantos problemas para humanidade. No entanto, o para evitar a impossibilidade do projeto cosmopolita, os elementos vinculantes da constituição se restringem em Habermas à política dos direitos humanos em âmbito universal e à proscrição das guerras de agressão. Nesse aspecto, seu projeto é notadamente semelhante ao de Kant, pois o filósofo de Könnisberg está preocupado diretamente com a possibilidade da abolição da guerra como recurso do direito e da implementação de um direito cosmopolita que permita um tratamento igual aos cidadãos do mundo.
(3)        Por último quero tratar do universalismo igualitário de Habermas. A sociedade mundial sem governo mundial representa a retomada do projeto cosmopolita kantiano à luz de pelo menos dois problemas contemporâneos: (a) pressão do sistema econômico que solapa as bases econômico-sociais da solidariedade criadas pelo Estado democrático de direito; (b) o pluralismo de cosmovisões de mundo iniciadas pelo processo de modernização das sociedades que acarreta a perda de sentido, desencantamento e deterioração das bases compartilhadas de um mundo da vida (Lebenswelt), cada vez mais desprovido da eticidade tradicional. Nesse sentido como falar em universalismo? O desafio que é colocado hoje para as sociedades complexas é criar integração, reagir à pressão dos sistemas e gerar a possibilidade de entendimento compartilhado livre de coerção. Nesse aspecto a proposta de Habermas difere de Kant, pois ao invés de confiar na possibilidade de uma razão que pode se realizar na história, Habermas chama atenção para a nossa contingência e falibilidade. A razão comunicativa capaz de gerar entendimentos no plano ético não tem pretensões de informar os conteúdos normativos para os sujeitos em interação. Somos nós que através da prática discursiva comum devemos descobrir nossos próprios caminhos. Se o ideal da paz em Kant se realiza por meio do progresso da razão na história, como poderia ser compreendido na Ideia de uma História Universal de um ponto de vista cosmopolita, entendo que, como Habermas, devemos renunciar a qualquer pretensão de progresso moral que não esteja única e exclusivamente em nosso entendimento mundano. O nosso universalismo deve estar ciente de uma constante revisão, inclusão e possibilidade de dar todos um tratamento igualitário por meio de discussões públicas. Estas devem reverberar nas instituições no âmbito nacional, transnacional e mundial. Até que ponto essas ideias são ou não kantianas, deixo a encargo da audiência decidir.