O cosmopolitismo é muito mais antigo do que a maioria dos autores costumam reconstruir. Robert Fine explica que o cosmopolitismo é anterior ao nacionalismo, tendo começado com os antigos gregos[1]. No mesmo sentido Andrew Linklater explica que a idéia de uma cidadania cosmopolita mundial teve sua primeira ocorrência com os gregos no quarto século A.C. quando a polis e as virtudes cívicas estavam em franca decadência[2].
Por sua vez Gillian Brock e Harry Brighouse acentuam que o termo cosmopolitismo tem sua origem nos estóicos, para quem a idéia de ser um “cidadão do mundo” resgata dois dos principais aspectos do cosmopolitismo: a questão da identidade e da responsabilidade[3]. Estes dois últimos aspectos são fundamentais para se repensar o conceito de cidadania diante da crise dos Estados nacionais, do sistema de bem-estar social e da pluralidade étnico-cultural em que nos encontramos.
Somado ao longo traço histórico, o cosmopolitismo tem encontrado ressonância nos meios políticos, filosóficos, sociológicos e assim por diante. Como Robert Fine acentua, os principais expoentes do pensamento moderno tem se defrontado com o cosmopolitismo em algum aspecto, desde o Abade Saint-Pierre, passando por Rousseau, Kant, Hegel, Marx e Durkheim, todos de alguma forma debruçaram-se sobre o cosmopolitismo e deram contribuições significativas[4].
Dentre todos estes grandes pensadores, foi Immanuel Kant quem deixou os traços mais profundos no ideário do cosmopolitismo, pois muitos aspectos de sua aclamada À paz perpétua de 1796 ressoaram nas instituições e organismos internacionais, cujo maior paradigma é a Organização das Nações Unidas. Kant continua sendo a principal fonte de filosofia política para os autores que resgatam e reconstroem o cosmopolitismo, cujos expoentes mais destacados podem ser citados aqui: John Rawls com seu Direito dos Povos, Jurgen Habermas (A Inclusão do Outro e A Constelação Pós-Nacional), Seyla Benhabib (Another Cosmopolitanism) e Otfried Höffe (Democracia no mundo de hoje).
No que tange as principais correntes que tratam do cosmopolitismo, Gerard Delanty[5] didaticamente as organiza, embora outros autores também o façam[6]. Assim, temos: (a) Cosmopolitismo Internacionalista e Legal, focado na engenharia institucional e na aplicação do direito em todas as esferas, transnacionais, nacionais e locais, como forma de ordenação global; (b) Defensores da sociedade civil global, vertente preocupada com a possibilidade política de uma governança global; (c) comunidades transnacionais, caracterizado por ser preocupado com um cosmopolitismo cultural; (d) Pós-nacionalismo, fundada na concepção de que os limites da soberania nacional não são mais suficientes para responder as novas demandas globais.
As correntes acima não são estanques, tampouco pode-se dizer que alguma delas não defenda novas instituições, direitos ou formas de organização política das sociedades e dos indivíduos. A complexidade que o tema abarca não permitiria poucos debates sobre o tema. Todavia, se o arco de correntes que defendem o cosmopolitismo é amplo, pode-se afirmar que o rol de críticas contra os seus argumentos não goza da mesma abrangência.
Geralmente, duas são as críticas clássicas quanto ao cosmopolitismo: a. que este seria apenas o novo veículo ideológico para interesses políticos particularistas mascarados em discursos universalistas; b. o cosmopolitismo não poderia propor um novo modelo de cidadania, pois não existem equivalentes na comunidade internacional para o nacionalismo e o Estado nacional[7]. Ambas as críticas são dignas de esforços argumentativos. Agora, contra elas podem ser opor os argumentos de que é possível um universalismo sensível às diferenças e inclusivo[8], bem como o exemplo da existência de uma comunidade internacional que legisla em favor dos direitos humanos[9], que reconhece os indivíduos como sujeitos de direito internacional[10] e institucionaliza mecanismos institucionais, sobretudo judiciais [11] para defesa desses.
Ainda, o cosmopolitismo não representaria apenas uma nova forma jurídica ou política para os desafios de um Estado nacional erodido em suas bases clássicas ou para a crise do conceito de cidadania. Antes, consistiria em uma nova forma de se pensar a sociedade, a política e o direito[12] para além das bases postas nos alvores da modernidade.
[1] FINE, Robert. Cosmopolitanism. Routledge: London, 2007, p. 09.
[2] LINKLATER, A. Cosmopolitan Citizenship. IN: ISIN, Engin F., TURNER, Bryan S (eds.) Handbook of Citizenship Studies. Sage Publications: London, p. 317.
[3] BROCK, G; BRIGHOUSE, H. Introduction. IN: The Political Philosophy of Cosmopolitanism. Eds. BROCK , G.; BRIGHOUSE, H. Cambridge University Press, p.02.
[4] FINE, R. Cosmopolitanism. Routledge: London, 2007, p. 09
[5] DELANTY, G. Citizenship in a global age: society, cuture, polits. Open University Press: London, 2009, p. 52.
[6] Como exemplo o de Barbara Arneil que também oferece uma classificação interessante para a definição das principais correntes filosóficas que abordam o tema. No texto Global Citizenship and Globalization a Autora as divide em: (a) cosmopolitismo liberal, cujo maiores expoentes são Jhon Rawls, Charles Beitz e Tomas Pogge dentre outros, cujo eixo central é a autonomia do individuo como unidade moral; (b) cosmopolitismo democrático, associado a Jürgen Habermas e Seyla Benhabib, no qual o mote é a expansão da teoria discursiva da democracia a níveis globais; e (c) cosmopolitismo radical, de Jean Cohen, Chantal Mouffe e William Connoly, que partem de análises marxistas e gramcianas da hegemonia e poder para rejeitar as idéias e a defesa do universalismo ético e criticar as duas correntes anteriores.
[7] LINKLATER, A. Cosmopolitan Citizenship. IN: ISIN, Engin F., TURNER, Bryan S (eds.) Handbook of Citizenship Studies. Sage Publications: London, p. 317
[8] HABERMAS, J. A inclusão do outro. Edições Loyola: São Paulo, 2007, 3ª edição.
[9] Nesse sentido, STEINER, Henry J. International Protection of Humans Rights. IN: EVANS, Malcom D. (ed.). International Law. 2nd. ed. New York: Oxford University Press, 2006.
[10] MACCORQUODALE, R. The Individual And The International Legal System. IN: EVANS, Malcom D. (ed.). International Law. 2nd. ed. New York: Oxford University Press, 2006.
[11] CASSESSE, A. International Criminal Law. IN: EVANS, Malcom D. (ed.). International Law. 2nd. ed. New York: Oxford University Press, 2006.
Cara, bem-vindo à blogosfera. Tens muito a contribuir e fico feliz de seguir, enfim, um blog com postagens asssinadas por ti.
ResponderExcluirSobre o cosmopolitismo, algumas questões sobre as quais gostaria de ler tua opinião:
1) O cosmopolitismo antigo e o moderno são a mesma coisa? Digo, imaginar uma cidadania que ultrapasse os muros da pólis e uma cidadania que ultrapasse as fronteiras dos Estados-nação são ideias com a mesma conotação? Que diferença faz a questão do nacionalismo, a questão da não presença de um império de proporções mundiais e a questão de um pano de fundo de direitos humanos?
2) Poderias precisar melhor as diferenças entre as abordagens contemporâneas do cosmopolitismo que apontaste na postagem? Quem são os representantes de cada uma delas?
Não precisa me dar respostas assim absolutamente técnicas, fica à vontade para me responder num plano (quase) informal.
Caríssimo André,
ResponderExcluirDemorou mas saiu. Evidentemente ficaram algumas lacunas na postagem. Não dava para esgotar o tema. Por isso o Título deveria ter sido Uma pequena referência (parte I). Mas aproveitarei as tuas perguntas e farei um segundo post para responder a elas. Após, penso em fazer uma série de postagens sobre o cosmopolitismo nos autores. Obrigado pelo apoio.
Olá professor Davi;
ResponderExcluirÉ com enorme satisfação que passo a incluir na minha barra de favoritos a leitura do seu blog, doravante o mesmo será fonte de estudo periódico.
No que pese a postagem inaugural, e meus irrisórios conhecimentos sobre o tema, restringindo-se exclusivamente a leituras kantianas (Á paz perpétua e alguns artigos de comentadores),aguardo o desenrolar do debate.
Abçs!
Quero saber o seguinte...
ResponderExcluirQuanto esse blog Começou que eu só fiquei sabendo hoje?
Bacana Davi. Estarei sempre por aqui pra dar piteco e falar sobre o que eu nao sei. Hehehehe.
Grande abraço.